segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Great Harbour, Jost vand Dyke, BVI, Reino Unido, 31-12-2012

A baía de Great Harbour está mais cheia de embarcações fundeadas do que o parque de estacionamento de um supermercado aos sábados. Para cima de cento e muitos. Ainda não fomo à baía ao lado, White Bay, mas deve ser a mema coisa.

Jost van Dyke, uma pequena ilha das BVI acolhe dois bares famosos na região: o Soggy Dollar - assim conhecido porque a maioria das pessoas chega lá a nado, com o dinheiro todo molhado - e o Foxy's, onde ontem comi um bife medíocre pelo qual esperei aproximadamente duas horas.

Não percebo esta necessidade de ir para onde vai toda a gente, mas é obviamente uma necessidade bastante partilhada.

O Foxy's é igual a todos os bares de praia da região;  o outro não será decerto muito diferente. Foi lá que se inventou o Painkiller, cocktail bastante bom, forçoso é reconhecer.

Ao lado dee mim está uma mesa de brasileiros. Deixou de ser raro encontrar brasileiros nestas paragens. É isso que é notável.

E pouco mais. Não sou muito de rebanhos, nem de festejos de fim de ano. Resta esperar que isto passe.

sábado, 29 de dezembro de 2012

Redhook Bay, USVI, EUA, 29-12-2012

Christmas Cove é uma baía relativamente grande no sotavento de uma ilhota das USVI.

O dia acaba muito devagarinho. E., o armador, dorme no poço; C., a mulher, nada com G., um jovem suíço que começou por pedir boleia em Miami para as ilhas e acabou por se tornar indispensável. Ou quase, que isto de gente indispensável estão os cemitérios cheios, como dizia o Napoleão.

Pela primeira vez desde que cheguei a Miami tenho um momento para mim. É curto, mas vale ao menos a maravilha que é: o vento a cair, o sol também, a praia deserta com o verde a encher-se de cor-de-laranja. Estamos numa bóia, perto da praia. As bóias estão bastante afastadas umas das outras. A sensação de paz só não é total porque descubro - ou relembro? - que não há paz com distância. Só contigo ao lado estou em paz.

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Não sou muito dado a Natais, nunca fui. Mas o de 2012 vai ficar-me na memória: bolina cerrada (assistida pelo motor, sem o qual S. não bolina nem folgado) frio, chuva e aguaceiros, o vento a mudar como um boxeur bêbedo, duas paragens do dito cujo motor, um incêndio a bordo (o primeiro da minha vida) - combatido logo no princípio, ainda só havia fumo, acre e tóxico -. Foram precisos dois extintores (pequenos) para lhe pôr fim. O piloto automático avariou, o motor tinha uma fuga de água, não tínhamos frigorífico nem gás de cozinha. Se é isto um Natal.

O sol pôs-se; daqui a meia dúzia de minuta será noite. Os nadadores voltaram para bordo, encantados com a variedade e quantidade de peixes; em breve serão horas de começar a preparar o jantar.

(Peitos de frango marinados em sumo de lima, chipotle, noz moscada e "épices boucanées"; cebola frita muito lentamente com "graines à roussir" e bois d'Inde).

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A mecânica do erro é uma coisa misteriosa: um gajo pode saber que não é o primeiro e não será o último, que não há quem não os faça, que isto e aquilo. "But it still sucks", como tão bem resumiu G., o jovem suíço que todos os dias revela um bocadinho mais de qualidades.

Fiz uma asneira de palmatória, um erro de principante, de bater com a cabeça nas anteparas (a bordo não há paredes) até a partir em mil bocados - sabendo que isso não apaga a vergonha, só a atenua.

De maneira estamos de novo fundeados em Redhook Bay, de onde saímos hoje de manhã depois de uma intervenção do mecânico, à espera do mecânico. Por minha causa, minha única e exclusiva causa, cansado ou não.

A verdade é que estou exausto, e saber que tenho três dias entre este "charter" e o próximo não ajuda. O próximo é curto; pode ser que depois consiga descansar.

Hoje mandei a diaba ao diabo e bebi gin tónico, painkillers, rum; até metade de uma cerveja bebi. Felizmente era Budweiser e só consegui beber metade. Já de painkillers vou servido. Quatro metades. Não há dor que resista a esta mistura de rum,sumo de ananás e de laranja e leite de coco (mais pormenores aqui).

Há: mas não importa.

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A rapariga é novinha, quase tem as faces rosadas da Paulinha do Baralto de há 34 anos. E faz-me pensar na empregada de bar de New Orleans de há 35. Em comum têm pouco: ser americanas, loiras e jovens. E trabalhar num bar ao qual vim parar por acaso. Em New Orleans o que primeiro me atraíu foi a música - era boa, não aqueles enlatados para turistas que se ouvia na Bourbon Street. A rapariga veio por acrescento. Simpatizámos - ela estava a trabalhar ali para juntar dinheiro e prosseguir a sua viagem para o sul; eu estava de regresso a Portugal, o fim de uma viagem que me fizera ver, logo desde o início, não ser feito para a marinha mercante.

Um dia fomos (o primeiro-maquinista e eu, calhara levá-lo lá) abordados por duas senhoras bonitas e, mon Dieu, avenantes. Falámos muito, bastante - até que a minha amiga se sentiu na obrigação de me avisar que não eram mulheres. As senhoras eram homens, afinal.

Elizabeth - é o nome da empregada que nos serve - é mais jovem, mais naïve: e mais tudo o que é menos.

Pouco me importa. Daqui a pouco volto para bordo, dormir em cima da asneira que fiz hoje. Hoje é um erro atroz. Amanhã será uma história.

sábado, 22 de dezembro de 2012

Puerto Plata, República Dominicana, 22-12-2012

A primeira vez que vi a costa cubana quase não a vi: umas sombras ao longe (não era assim tão longe) durante o dia e algumas luzes dispersas, à noite. Gostaria de ter visto mais. A minha história tem uma longínqua e indirecta relação com Cuba.

Jovem oficial da Marinha Mercante, o meu Pai fazia uma linha que transportava açúcar de Cuba para Londres. Penso, mas não tenho a certeza, que as grandes plantações estavam no sul do país; eu passei pela costa norte. Pouco importa. De qualquer forma quero um dia parar aqui e conhecer a ilha. Se possível depois da morte de Fidel Castro - ou melhor durante, para poder celebrá-la in loco.

Em Londres, a minha Mãe estudava enfermagem. Uma amiga comum apresentou-os, e um ano e alguns meses depois eu nascia, primeiro de cinco irmãos. Somos vagamente irmãos; o meu Pai morreu, a minha Mãe há muito que não é enfermeira. Da Cuba de Baptista, onde o meu Pai carregava açúcar e resistia aos assaltos das herdeiras dos grandes plantadores (se não tivesse resistido, eu seria um outro qualquer, provavelmente a viver na Miami de onde larguei há quatro dias) ficou uma costa que mal se vê, luzes dispersas, e uma tristeza difusa. Gostaria tanto de falar com Ele hoje sobre Cuba, sobre os portos onde ia e que eu quero visitar, e mais uma série de coisas que não ficaram por dizer, mas ficaram por comprender, de parte e outra.

Depois de Cuba veio Haiti. Ainda tinha menos luzes, e quando o vento mudou e passou a SE trouxe com ele um cheiro a madeira queimada que me assustou. Não era o cheiro de um incêndio, mas o de lenha que se queima para cozinhar, um odor que conheço bem de Moçambique, do Burundi, do Zaire. Eram três da manhã, e apesar de a Lua estar em quarto crescente a noite era negra de breu: vinha chuva, e para vante a escuridão era tal que não distinguia a linha da costa, a escassas duas ou três milhas.

"Quem raio está a cozinha em terra a esta hora? E para quantas pessoas? Porque não vejo a luz do fogo?" Acabei por me habituar; deve ser o cheiro da terra, tal como o Algarve tem o seu, tão bonito, quando se dobra o cabo de S. Vicente. Ou a Córsega, tão parecido com o do Algarve. Cada região deve ter um cheiro específico, embora só nos apercebamos de alguns, por causa do vento e da ausência de outros cheiros.

O teu, por exemplo, que tanta falta me faz, pela manhã antes do do café, e pela noite, antes do do sono.

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Vamos fazer uma escala técnica em Puerto Plata, na República Dominicana. Para fazer bancas, velha expressão da marinha mercante que significa meter combustível. O meu Pai gostava da vida de mar, e só a deixou a contragosto - a minha Mãe tem uma certa capacidade de persuasão, quando quer. Dessa vida trouxe com ele o vocabulário - durante dois anos disse "vamos fazer bancas", ou "vou guinar a estibordo (ou a bombordo, claro)" ou - a minha favorita - "vou atracar ali" quando guiava o automóvel; um hábito adorável (pegar no prato de sopa e levantá-lo para comer) que fazia a minha Mãe dar-lhe pontapés se por acaso acontecia durante um jantar de cerimónia e muitas histórias. Não me lembro de nenhuma passada aqui.

Eu tenho uma, demasiado longa para contar agora. Mistura uma praia, uma cabana com um banda a tocar merengues, uma simpatiquíssima família local, alguns ouriços e muito rum. E um maço de cigarros Marlboro cheio de erva até acima, coisa que me poderia ter mandado para a prisão "quinze anos, antes de ser julgado" avisou-nos o Capitão antes da chegada.

Apanhei uma das maiores bebedeiras da minha vida e a erva voltou intacta para bordo - risco dobrado.

Desta vez não tenho motivos para grandes aventuras - vai ser chegar e meter combustível, se a bomba ainda estiver aberta. Ou passar uma noite tranquila, caso contrário.

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Caso contrário. Como temia a bomba está fechada; abre amanhã às oito da manhã.

A marina é um horror, tanto tanto técnico como estético, de um kitsch como já há muito tempo não via. Felizmente é pequena.

Os locais endinheirados prezam-na muito, para os aniversários, casamentos e outras festas. Num dos dois restaurantes havia uma celebração; por coincidência - ou porque estávamos demasiado cansados para procurar o outro - foi lá que jantámos.

Não é efeito, ou defeito, da memória: as pessoas são realmente adoráveis, simpáticas. Mas o restaurante não servia um único prato local. Só pechisbecadas - mexicanas, brasileiras, alemãs - sem qualquer interesse.

Penso no restaurante que uma das minhas irmãs teve no Alentejo, que só servia comida alentejana aos fins-de-semana: "os alentejanos não saem de casa para comer comida alentejana", explicou-me R., com uma lógica imparável.

Mas a lógica devia considerar a localização; um restaurante - por sinal sublime - em Viana do Alentejo não devia servir para explicar um outro, medíocre, numa marina da costa norte da República Dominicana.

Ou talvez sim. 

domingo, 16 de dezembro de 2012

Miami, Florida, EUA, 16-12-2012

Acontece frequentemente chegar a uma cidade e não ter tempo para a visitar: esta vez é uma delas. S., uma soberba goeleta de 62' cujo desenho foi inspirado num Morgan 60 tem vinte e nove anos; não é bem uma caixa de surpresas, porque não é surpresa. Repara-se uma coisa e descobre-se que as quatro ou cinco que lhe ficam a montante também precisam de ser reparadas e, ou, mudadas. Por isso, de Miami tenho a vista matinal quando vou para o estaleiro, e a nocturna, muito mais bonita, quando dele regresso.

À noite os prédios da baixa estão iluminados e o fundo é o clarão do resto da cidade. O efeito parece um cenário de filme de ficção científica, como se estivéssemos a chegar a um aeroporto de uma cidade noutra galáxia.

Em Maio terei tempo de conhecer melhor esta cidade. Gosta de se fazer passar por um transplante sul-americano no lado norte do continente, mas não é: o espanhol fala-se em todo o lado, pode viver-se aqui - e muitos fazem-no - uma vida sem falar inglês, mas se se quiser ir um bocadinho mais longe do que a superfície das coisas mais vale falar inglês e perceber o mecanismo.

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Se soubesse que havia patrões como os donos do S. teria, há muito tempo, procurado um emprego fixo. E seria capaz de usar a palavra patrão sem hesitar dez segundos.

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Amanhã largo para as BVI. A última vez que estive no mar foi no dia 1 de Outubro. Dois meses e meio é muito tempo, uma eternidade.

Chega até para encontrar um trabalho permanente, de longo prazo, com um programa pré-estabelecido (no verão vamos para a Nova Inglaterra - se formos, mas isso é outra história). E ser feliz, de novo.

domingo, 9 de dezembro de 2012

Falmouth Harbour, Antígua, Caraíbas 09-12-2012

Por onde se começa quando se volta ao princípio?

Voltei a casa. É um lar incompleto, faltam-me cá os que amo, mas não deixa de ser um lar por isso.  Falmouth Harbour deve ser o melhor sítio do mundo para se estar sozinho. Fui recebida com muito carinho, e os que cá me faltam também. Ainda não vi todos. Faltam-me, sobretudo, Sandra (a alma do Skullduggery durante a semana) e R., o segurança jamaicano que tem cara de anjo e trafica marijuana. E falta-me um trabalho que foi, afinal, o que me trouxe aqui. Mas tenho-me a mim, e já não é pouco. Até vir o trabalho (que, se Deus quiser, não há-de demorar muito), estou comigo, com os que cá estão e com os que me faltam. Sempre com os que me faltam.

A viagem à Martinique foi uma série de coincidências felizes, que só acontecem a alguém com, perdoem-me a expressão, o cu virado para a Lua. Só viajei uma vez sem ser à boleia. No último dia  dormi como uma pedra no veleiro do R., uma experiência "à antiga", não fosse o barco mais velho do que eu e o seu armador um cavalheiro como já não se fazem. Depois do último planteur da ilha no Mango Bay, jantámos no barco de um adorável casal de venezuelanos lúcidos e, consequentemente, antichavistas. Vivem na Isla Margarita e, com o que eu gasto em gasolina para encher o depósito em Portugal (cerca de 70 euros), conduzem um ano inteiro. A definição perfeita de choque civilizacional para mim -- agora fazem sentido os relatos de que, há uns anos, a gasolina na Venezuela era usada para lavar carros.

Decidi, para me despedir, conhecer Les Salines, uma praia indescritível de que o Luís me falara com uma admiração sentida --  tão grande que andou mais de uma hora para chegar à praia e outra para voltar, pingando suor, e me fez sentir estúpida por não ter ido com ele. Caminhei uma hora e depois, vendo que ainda estava longe, decidi apanhar o taxi-co. O motorista avisou-me de que só me levava até a uma povoação perto da praia, e desejou-me courage quando saí, um presságio que decidi ignorar. Comecei a andar e a pedir boleia às senhoras que via (todos os outros carros tinham homens e a minha confiança na Providência tem limites). Nada. Passados uns 15 minutos parou um carro à minha frente. O rapaz que conduzia perguntou-me onde ia e o que fazia ali àquela hora (eram 17h15, o sol estava a pôr-se e, nos trópicos, a noite cai mesmo como uma pedra num charco). Respondi-lhe que queria conhecer Les Salines e riu-se, chamou-me louca. Levou-me lá porque trabalha no Marin, de onde eu vinha e todos os dias, para evitar os engarrafamentos de regresso a Fort-de-France, dá um passeio de carro. Chegámos à praia e disse-me: «Se te despachares levo-te ao Marin.» Nem queria acreditar. A praia tinha quatro carros de turistas que já sacudiam a areia dos pés, um vendedor de gelados e uma de accras que se preparavam para voltar a casa. Vi a praia e, em dois minutos, apaixonei-me, percebi a falta de palavras e esqueci o medo que tinha sentido ao fazer aquele caminho -- eu sabia que a noite cairia, mas pensei que já que tinha começado, mais valia continuar e alguém, a tal Providência, havia de me ouvir. F. voltou a receber-me no carro atulhado de ferramentas e, como se não bastasse levar-me de volta à cidade, levou-me a ver o resto da praia, fez-me uma visita guiada, voltou a parar para acabar de comer o gelado à beira-mar. Fiquei com o seu número de telefone. Se conhecer alguém que precise de trabalhos em fibra de vidro no Marin, não o deixarei pensar duas vezes.

No dia da partida, a caminho do aeroporto carregada como um burro -- uma mala com uns 16 quilos, uma mochila com cinco e uma guitarra que não toco -- pergunto a um senhor onde se apanha o taxi-co. Diz-me: «Vais para o aeroporto? Espera um bocadinho que eu vou só pôr o Euromilhões e deixo-te lá.» Espero que o ganhe. Mais uma vez, nem queria acreditar. Como quase não acredito que conheci a M., que cantava na fila para o check-in para espantar a má-sorte de ter uma bagagem muitos quilos acima do peso permitido (um donativo de velas para uma igreja em Barbados), uma mulher interessantíssima que diz que a sua maneira de mudar o mundo é fazer lavagens cerebrais aos miúdos que ensina na sua escola; ou que encontrei L., músico jamaicano de grande corpanzil vestido com um uniforme do Jah Army, que pegou na minha guitarra e me cantou com uma voz de manteiga uma coisa da qual nunca me esquecerei, no meio do aeroporto de Barbados; ou que aterrei na Dominica, cuja pista colada ao mar nos faz sentir que entrámos dentro da ilha por uma autoestrada.

Depois de uma viagem tão longa para uma distância tão curta (a Liat tem voos directos até cada uma das suas diversas paragens, celebrei a chegada a Antígua no Skullduggery com um bolo de chocolate e um rhum punch. Depois voltei a celebrar com um rhum punch no Mad Mongoose, uma conversa com gente boa e a certeza de que o gato Lager continua feliz. E, como se não bastasse, celebrei outra vez com um rhum punch em casa de amigos, até às dez da noite, que aqui são quinhentas. Hoje bebo água, mas ainda estou embriagada. É bom voltar a casa, mas faltam-me os que me faltam, isto é, quase não me falta nada para me faltar tudo.

quinta-feira, 6 de dezembro de 2012

Le Marin, Martinique, Antilhas Francesas, 06-12-2012

Se tivesse respeitado o desejo de só postar aqui quando tivesse boas notícias teria tido de esperar até hoje (enfim, ontem, para ser mais preciso): encontrei, finalmente um trabalho que é simultaneamente óptimo e fixo.

Juntar finalmente e trabalho fixo soa estranho. Afinal, com dizia ontem o meu amigo R., "foram só trinta dias" (referia-se aos dias difíceis em Palma). Mas a verdade é que a ideia de encontrar um lugar estável já me vinha a perspassar pela mente há algum tempo, mesmo antes desse maldito mês em que tudo dava ideia de conjurar contra mim. À chegada ao Marin tive uma proposta, mas era péssima e estava com pouca vontade de a aceitar.

Esta não. Sei pouco dela, no fundo: é normalmente paga, o barco é um 62' com vinte e nove anos (uma qualidade, para mim) que vai ser substituído por um catamaran em Maio; no Inverno vamos navegar pelas Caraíbas e no Verão pelas Bahamas, Flórida e - maravilha das maravilhas - Nova Inglaterra ; pouco mais, duas ou três condições - todas boas - um armador que ao telefone parece simpático e promete uma vida fácil e com poucas exigências a bordo.

Não sei se a realidade vai confirmar isto, ou se se vai dar ao trabalho de escaqueirar as expectativas com a desculpa, assaz esfarrapada, de que aos 55 anos não devia acreditar em Pais Natais. A ver vamos, como dizia o outro - é demasiado cedo para chamar para aqui o ceguinho.

Amanhã embarco num avião para Miami. Faço uma escala em San Juan mas não terei tempo de sair do aeroporto. Tudo isto me aparece envolto em perguntas, em dúvidas, em - porque não dizê-lo - medo. A verdade é que nunca quis ser skipper de proprietário porque a bordo não sou um modelo de tolerância e flexibilidade. A única hierarquia que reconheço é a do saber, não a do dinheiro ou da posição na pirâmide social. E sempre pensei que não há dinheiro que pague a liberdade de poder dizer vou-me embora.

Agora o desafio é manter o emprego (o meu recorde está em um ano e foi no Burundi, o emprego de que mais gostei até hoje), tentar aceitar que quem me dá trabalho tem uma palavra a dizer e não necessariamente errada; e sobretudo, lembrar-me de que a relva do jardim do lado é mais verde por causa de uma ilusão de óptica, só.

Esta é a parte mais fácil, e é o que me encoraja.

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Não sou grande fã de praia, mas Les Salines não é uma praia, é uma excepção, e ontem fui lá. Cinco quilómetros a pé à ida, três (é uma estimativa) à volta: a boleia sem a Tatiana não funciona tão bem como com.

Estava a precisar de mar, viesse ele como viesse.

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A vinda ao Marin revelou-se inútil, em termos de trabalho. Mas gostei de passar por aqui, rever paisagens e amigos, provar boudins e accras. Hoje vou mesmo autorizar-me um ti punch, em guiso de despedida. Tanto mais que o nível da substância no sangue voltou ao normal.

Da p... da substância, deveria dizer. Ainda por cima é uma coisa da qual não gosto e que quase não como.

domingo, 2 de dezembro de 2012

Le Marin, Martinique, Antilhas Francesas, 01-12-2012

A Martinique em geral e o Marin em particular acolheram-nos bem: uma boleia inesperada, um excelente jantar no Vieux Foyal, beijos, abraços e uma proposta de emprego ao ano. A ver se conseguimos os papéis e a vontade para ele.

De resto, está tudo na mesma; S, a diminuta e roliça dona do restaurante A la Maison, no Marché Couvert, ainda se lembrava do meu nome: "Louis, como o meu marido". O frango estava delicioso; e uma porção deu para os dois. Só tenho pena de não poder preceder a coisa com um ti punch, mas enquanto determinados níveis de determinadas substâncias no sangue não voltarem ao normal não há ti punch. Deus (se existisse) e muitos proprietários de cafés, bares e restaurantes por esse mundo fora sabem que não me tenho preocupado muito com o corpo. Mas no outro dia em Palma apanhei um susto, e o meu médico adorado diz-me "e vai apanhar mais como esse, se não tomar cuidado". De maneira agora "tomo cuidado": ando muito, como menos, e resisto ao apelo do ti punch.

No Mango Bay também se lembravam de mim. J., o proprietário, fez-me a habitual declaração de amor; as empregadas são quase todas as mesmas e deram-me muitos beijinhos; a vista para a marina, cheia a abarrotar, continua única.

Não é Antigua, mas está lá perto. Com um bocadinho de sorte terça-feira temos uma boleia para St. Martin; e de St. Martin a Antigua é um pulo.

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Esta história das qualificações é uma seca; bem podia ter esperado uns anitos para tomar esta envergadura. Até para deckhand pedem Yacht Master Offshore! Um curso da Escola Náutica e trinta anos de experiência pesam muito pouco, quase nada.

Eu percebo, claro. E a metade má de mim até concorda; mas a boa metade, a anarquista, caótica, vagabunda, apaixonada pelo mar - a metade livre, numa palavra - continua a resistir. A ter vontade de "os" mandar a todos para a pata que os pôs. De fazer, como sempre, o que lhe dá na gana e só o que lhe dá na gana. Algo me diz que essa metade vai, em breve, ter de engolir alguns sapos.

Se ao menos os pudesse acompanhar por um ti punch bem puxado...

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Sei perfeitamente onde é a minha casa: um veleiro a mil milhas da costa mais próxima. O cemitério é na piscina, o que demonstra o extraordinário e criativo espírito reciclador do arquitecto. E não tem jardim, seja Deus louvado.

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Às vezes penso nos carrinhos de choque parados no meio da pista, quando se acaba a volta. Iam todos a caminho de um sítio qualquer, ou nenhum; mas acabou-se-lhes o tempo e por ali ficam, quedos e tristes até alguém pegar neles outra vez, a electricidade voltar e eles poderem recomeçar as suas inúteis voltas e choques.

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Qualquer dia estou no mar. O resto é conversa de tantes. (É bom, regressar ao francês).

Le Marin, Martinique, Antilhas Francesas, 01-12-2012

Chegámos em aviões separados. O site da Air Caraïbes permitiu-nos fazer uma reserva para a Corsair e a que fizemos ao balcão era mesmo para a Air Caraïbes, num voo que partia praticamente à mesma hora. Depois do pânico inicial (e se o meu lugar afinal não está reservado? E se um dos aviões cai?) estabeleceu-se uma certa calma: duas horas de espera, por conta de uma avaria no avião, à conversa com S., um jovem chef que faz a época de Inverno num restaurante próximo de Fort-de-France e que lembra com saudade um bacalhau à Brás que comeu, feito pela a avó de um dos seus companheiros de casa em Montpellier.

Apesar do atraso e do cansaço de uma noite nos assentos superreclináveis (o tanas) do trem-hotel Barcelona-Paris, o meu voo foi magnífico. Passei-o sem dormir, a deliciar-me com o sistema Horizon, através do qual assisti a três filmes (Le Magasin des Suicides, uma animação genial e divertida, The Last King of Scotland e Mystic River, simplesmente brilhantes) e me pus in the mood, com um álbum de Bob Marley e algum zouk de boa qualidade (coisa que me tinham assegurado que não existia). Mais de metade da classe turística jogava ao Quem Quer Ser Milionário? no pequeno ecrã, a outra metade dormia. Houve gargalhada geral quando o comandante anunciou a temperatura na ilha. O sol, já bem posto àquela hora, deixou a beira-mar de um azul fluorescente do qual já não me lembrava.

À chegada, esperei meia hora pelas malas, à boa maneira dos trópicos. Troquei contactos com S. e encontrei-me com o Luís, que me esperava tranquilamente (o que me surpreendeu, pois chegara duas horas antes) no único cibercafé do aeroporto. Depois de percebermos que a Martinique não é bem Saint Martin, ou seja, não se alugam carros sem cartões de crédito de plafonds inalcançáveis para pobretanas como nós, fomos saber os preços dos táxis. 70 euros por 38 quilómetros, mesmo depois de  regatear, pareceu-nos imoral. De sacos às costas, fomos para a saída do parque de estacionamento pedir boleia (estranhamente, a sugestão foi minha; afinal, estou a aprender a ter 25 anos). Um senhor muito gentil desviou-se do seu caminho e, em vez de ir directo ao Lamentin, onde vive – uma localidade muito próxima do aeroporto – levou-nos à capital, a uns 15 quilómetros dali. Agradecemos-lhe efusivamente os 30 euros que nos poupou.

Chegados a Fort-de-France, e como não podia deixar de ser, fomos directos a um bar/restaurante de que o Luís, uma espécie de páginas amarelas-guia gourmet ambulante, se lembrava. A proprietária, ao ver as nossas bagagens, perguntou-nos se nos estávamos a mudar. Ajudou-nos a encontrar um estúdio por uma noite, no outro lado da rua. Do jantar há pouco a dizer e muito a recordar. Músicos excelentes, com quem tive a sorte de cantar algumas canções e perceber que tenho muito a aprender, um chatrou (polvo estufado) delicioso, um prato crioulo inesquecível e um planteur (rhum punch para os amigos) que me fez sentir em casa.

Estou em casa e não estou. Porque a nossa casa são, também, as pessoas que nos fazem falta.

Ontem chegámos ao Marin e procurámos imediatamente trabalho. Uma hipótese exige-nos uma visita aos affaires maritimes para podermos, com as nossas qualificações, obter equivalências para trabalhar em França.

Entretanto, vou conhecendo os lugares onde, sem saber, te conheci. O Mango Bay (cujo dono está descaradamente apaixonado por ti, coisa que não me surpreende), o Marché Couvert (onde comi ontem das melhores refeições da minha vida) e esta baía sem mar, que nos dá a impressão de estarmos, ao mesmo tempo, protegidos e limitados.

Tudo indica que a vida aqui deste lado não mudou. Eu sim, e não juro que tenha sido para melhor.


quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Barcelona, Catalunha, Espanha, 28-11-2012

Os dias foram difíceis; mas não é por isso - antes ao contrário - que não se tomam decisões. São para tomar e executar logo, sem muito tempo perdido em lamentações nem arrepanhar de cabelos (dos quais de qualquer forma tenho cada vez menos).

Se no R. B., barco para o qual tínhamos tudo e mais alguma coisa a favor não conseguimos embarque não valia a pena insistir muito mais. Ou seja: vamos de avião para Antigua. Com muita pena e alguma bagagem, pouca, felizmente.

Vamos por um caminho complicado: Barcelona, Paris, Martinique. Ivan Illich, um  dos raros intelectuais de esquerda que respeito [acabo de encontrar uma citação dele que me fez pensar na reacção histérica a Isabel Jonet: "In a consumer society there are inevitably two kinds of slaves: the prisoners of addiction and the prisoners of envy"] escreveu um livro chamado Energy and Equity no qual fala, entre outras coisas, da relação entre o poder e a energia. Eu penso em dinheiro versus tempo. Tempo é dinheiro? Sem dúvida. Mas a relação entre eles também é inversa: quanto menos dinheiro, mais tempo - para ir de um lado para outro, por exemplo.

Não sei se gastámos mais ou menos energia vindo de avião para Barcelona, apanhando um comboio nocturno para Paris (qual a energia de um quarto de hotel que se poupa?), avião para a Martinique - o bilhete é mais barato do que para Antigua, e no meu Marin, onde isto tudo começou, ou arranjo um job ou uma boleia para "a minha casa", por enqanto ainda com aspas.

De que gastamos muito mais tempo há, em contrapartida, poucas dúvidas.

E aventuras. Hoje roubaram-me o saco do computador; pouco tempo depois o senhor que mo roubou devolveu-mo - na pressa não reparou que a máquina estava à minha frente na mesa e não na mochila (não me disse isso, claro. Balbuciou outra coisa qualquer e desapareceu). Foi simpático da parte dele, mas não me impediu de o assinalar a dois polícias que pouco depois passaram por ali.

Enquanto isso, eu tentava lidar com a Air Caraïbes, que num anseio anulou o meu bilhete pois fora pago com um cartão de crédito que não era meu. É simpático para o dono (neste caso a dona) do cartão; mas chato para mim - gastei o saldo internacional do telefone, a bateria do computador e a bateria do telefone (por esta ordem) a tentar repor a reserva, não fosse a dona do cartão ter de ir sozinha para a Martinique e eu por aqui ficar sozinho.

Tudo se compôs, claro - os problemas acabam sempre por se resolver, se não não seriam problemas - e tivemos um bónus: conseguimos uma tarifa especial no comboio da noite.

O prémio disto foi: um dia esplêndido em Barcelona. De manhã no Mc da estação de Sants (por causa do wifi gratuito); à tarde no restaurante da estação de França (por causa do wifi gratuito, da beleza e conforto do local, para carregar baterias - literais - e para escrever entretanto).

É realmente lindo, o sítio (esta fotografia está simultaneamente esplêndida e realista; estas também). Quando saímos do aeroporto viemos para aqui. À noite o Restaurante Station Barcelona transforma-se em piano-bar, café-concerto, cabaret, dependendo dos dias; ontem foi dia de tango, por exemplo, e estavam bastantes pares a dançar. Era bonito, parecia que estávamos não a caminho de Paris e à procura de um quarto mas no meio de uma viagem no tempo, à espera do coche que nos ia levar para o palace mais bonito do século passado. É um sítio para casais adúlteros, desses que sonham deixar tudo para trás e começar de novo no outro extremo da linha (a linha não tem extrems, mas isso é outra história).

(Acabámos num quarto bastante aceitável a vinte euros, pequeno almoço e IVA incluídos.)

Não vou ter tempo para mostrar Paris: um caso de proporção directa entre dinheiro e tempo.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 26-11-2012

Dias difíceis. Não sou muito dado a "já-estive-aquis-e-alis", mas um dia gostava de fazer uma lista dos sítios onde já fui feliz, infeliz, onde já tive fome, onde já não-tive dinheiro, onde já fui rei. Seria um mapa muito mais interessante.

sábado, 24 de novembro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 24-11-2012

A ideia era só escrever quando houvesse boas notícias; mas não as há. Só más e muito más, em todas as frentes. O R. B. escolheu outros tripulantes para a travessia e há cada vez menos barcos em Palma. As perspectivas de atravessar o Atlântico de barco são quási nulas.

As duas ou três últimas semanas foram difíceis: doença, hospital (por meia dúzia de horas, só; mas foram duras, as horas). E agora isto. Desta vez não posso correr com o tempo; e pôr-me de capa tão pouco. Há que continuar a marchar. Esperam-me uns dias largos de bolina, dias sem vento ou com ele a mais. Mas não podemos parar.

Sobretudo parar em Palma. Estou farto da cidade até à ponta dos cabelos e ela não tem culpa nenhuma - continua a cidade afável e bonita de há dois meses e meio. Mas os sítios onde estamos não são o que são, são o que nós somos, ou como nós estamos. "Não vemos as coisas como são, vêmo-las como somos", escreveu Anaïs Nin; ou como estamos, talvez seja mais exacto.

Só penso em Antigua. A ver se desta vez é tão bom como da outra; a ver se é lá que um dia terei um país. Algo me diz que não, que ainda não é desta. Mas é preciso ir ver.


quarta-feira, 14 de novembro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 14-11-2012

A greve em Palma sentiu-se pouco: dois senhores a apitar numa esquina, acompanhados por uma senhora sem apito, e um "piquete ciclista" a percorrer as ruas; tudo funcionava, incluindo os semáforos. Pelo menos o tudo que usamos: lojas, o bar Gibson - actualmente o nosso escritório -, o mercado onde comprámos sobrasada para logo à noite e o supermercado de onde gentilmente,  a um preço bastante competitivo, vieram as duas garrafas de cava (os semáforos eram uma piada; só os usamos para atravessar a rua. Fazem-me lembrar aquela parte dos funcionários públicos - longe de mim pensar que é a maioria - que não dá um passo nem os deixa dar a quem quer andar).

De resto cá vamos andando, de quase em quase: quase um trabalho na Tailândia para a Tatiana, quase um transporte de Inglaterra para a Grécia, quase quase quase. Quantos quase são precisos para fazer um sim? Acho que já excedemos tudo o que é razoável, o tipo (ou a senhora) que controla a matemática da vida devia prestar-nos um bocadinho mais de atenção.

A verdade é que já não estamos em Palma; as nossas mentes estão longe, em Antigua, em St. Martin, na Martinique, nos Deux Pitons, nas Grenadines, em Grenada, tão verde e tao bonita; em Bequia, no Captain Mack's Bar and Galley ou no bar do Lucífer, que me perguntava quanto tinha pago a última vez pelas lagostas para saber qual o preço hoje (e, abençoado seja, quando lhe pedíamos um rum nos punha uma garrafa cheia na mesa e cobrava o que faltava - às vezes faltava a garrafa toda, vá lá saber-se porquê).

E não são os edifícios de Gaudi contíguos ao bar que me trazem de volta. 

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 12-11-2012

Mudámos outra vez de casa; agora moramos perto da Plaça de Frederic Chopin. Não foi a música que nos trouxe, claro: foi o preço, bastante mais baixo do que a casa de A., e a localização. Estamos de novo no centro da cidade.

É marginalmente melhor estar encalhado no centro de uma cidade do que na sua periferia.

Há menos trabalho em Palma, e mais, muito mais gente à procura do que é habitual. De momento a única esperança mais ou menos concreta que temos é a de uma travessia no R. B., um nome feio para um barco lindo. Mas o capitão só chega no fim desta semana, e até lá não passará de uma esperança.

O senhor que me queria contratar para a Costa Rica adiou o projecto para Abril. Não sei onde estarei em Abril. A verdade é que quando estou sem trabalho sonho com um trabalho fixo; e quando estou embarcado fico feliz por o trabalho ser temporário. Nestes barcos passa-se muito tempo em terra, e apesar de tudo navega-se mais em freelance. Mas também se encalha mais. Não somos os únicos - o consolo é parco, mas é algum.

A Plaça Chopin também é de parco consolo - não é bem uma praça, é mais uma rua de peões com árvores de ambos os lados e bancos entre elas, onde à noite por vezes me sento para ter acesso à net.

Depois vou para casa tossir, ouvir a Tatiana (e toda a gente com quem falo, verdade seja dita) dizer-me que tenho de ir ao médico, tomar uma colherada de xarope e dormir. Os sonhos são maus, mas são melhores do que estar acordado.

A próxima vez que me apareça um trabalho fixo aceito-o, prometo; enfim, pelo menos prometo que pensarei nisso a sério, mais de cinco segundos.

sábado, 10 de novembro de 2012

Línguas e pátrias, Palma, 10-11-2012

G. pôs-se a ler "O Principezinho" no sofá. Olhava, aluado, o tecto como se fosse o céu e evadia-se nele. C. entrou na sala e perguntou-lhe: «O que estás a fazer?» Ele respondeu: «O atum! Ahhhh, estou a ler...» O livro estava ao contrário; G. pensava no que ia fazer para o jantar.

Noutra ocasião, C. decidiu rever com G. algumas conjugações dos verbos em castelhano. Há, no castelhano, um tempo verbal chamado "pretérito pluscuamperfecto". G. tinha a certeza de que de onde ele vinha, lá na Argentina, o nome era "Juan Luis Perfecto". Um senhor tempo verbal.

Estas foram duas das histórias que nos puseram a rir à gargalhada no jantar de despedida de C., num bar/tasca chamado Molta Barra, com um Pa Amb Oli delicioso e uma tapa de chouriços cozinhados em sidra a que chama "políticos a la sidra", vá lá saber-se porquê. C. emigrou para o Canadá, onde tem os filhos e, ao que parece, o futuro. «A Europa morreu», dizia-me H. no outro dia. Senti isso mais em Palma do que noutro sítio qualquer. Da gente estrangeira que aqui conheci, só uma pessoa quer ficar (e é porque vive em Inglaterra, onde o clima se pode tornar mais detestável que qualquer crise, real ou anunciada).

G. é um miúdo doce que partilhou a casa com C. e N. antes de nós. Fez uma despedida comovente a C.: como se esqueceu dos presentes no outro lado da ilha, colocou cartazes nas escadas do prédio dizendo piadas e ternuras. Como todos os argentinos, usa muito a expressão «que liiiindo». É um povo que já me está mais no coração do que a maioria dos cardiologistas aconselha.

Palma está cheia de argentinos. Só S., um argentino adorável que conhecemos em Antígua, tem uns 20 amigos argentinos por aqui. Numa noite conhecemos uns seis dos seus amigos, todos empregados de bares e restaurantes, todos simpáticos e sorridentes, quase todos giros, com buenos aires. E todos longe do seu país, como Gu., que o detesta e não cede à hipocrisia de dizer "que o adora mas não pode viver nele". Eu não sei, já, se gosto de Portugal. Não gosto de que os meus amigos estejam desempregados, ou que não possam mudar de emprego porque de certeza não encontrarão outro. Não gosto de que os meus amigos tenham de deixar um país onde gostam de estar porque não conseguem, nele, viver como viveriam noutro. As razões pelas quais deixei Portugal foram apatrióticas, mas voltar cada vez mais me parece um esforço, uma decisão difícil. Tenho saudades desses amigos e -- muitas -- da minha família. Mas não tenho do resto. Além de que ando a reler Eça de Queirós. Se me perguntam o que leio respondo, simplesmente, «Portugal».

Talvez haja uma explicação para não ter saudades: «O essencial é invisível aos olhos»; o atum, se não há, também.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 05-11-2012

Dizem que a vida é assim: uma coisa mais ou menos caótica (embora ordenada, de alguns pontos de vista -- nascimento, vida, morte) e imprevisível, como acontece quando por exemplo ouvimos um tema do Chick Corea, cheio de vento, borboletas, fantasmas, chuva e sol, ondas e fogos de artifício, choros de viúvas e de recém-nascidos, e por aí em diante até não sabermos se aquilo é triste ou alegre ou se é só, passe a redundância, a vida como dizem que ela é, uma coisa mais ou menos caótica, embora ordenada de alguns pontos de vista, como o nascimento, a vida ou a morte, mais certas do que dois e dois serem cinco.

De maneira que estou outra vez sem trabalho e isso dá-me cabo do juízo. Não tenho jeito para a instabilidade. Felizmente, alguma estabilidade restabelece-se: o Luís, ao meu lado, fala mal da esquerda portuguesa, sinal de que está a recuperar da gripe (graças a Deus, não sabia, como se ouvisse um tema do Chick Corea, se havia de rir com a sua infantilidade tão surpreendentemente tardia ou de chorar com a fragilidade que me assustou tanto e me fez temer-lhe pela vida, apesar de ter sido só uma gripe. Adenda importante: o Luís não é piegas, insulta a tosse com os pulmões que lhe restam, enraivece-se com a doença com o ânimo que ainda lhe não lhe escapa, chama-lhe puta, pífia, e depois sucumbe à exaustão como uma criança birrenta ao sono, ou eu às preocupações).

O melhor que uma pessoa pode fazer é render-se, li não sei onde, ou disse-me não sei quem. «Tenta mudar o que dizes a ti própria; em vez de dizeres "eu não posso ser assim" ou "as coisas não podem ser assim", diz "eu sou assim" ou "as coisas são assim" e procura força para aceitar o facto de as coisas serem assim». disse-me L. A verdade é essa: as coisas são assim e não posso, por agora, fazer muito mais para que deixem de o ser. Ora vejamos: dockwalking, responder a dezenas de anúncios sem sequer ter direito a um "não, obrigada", comer sempre em casa gastando o mínimo possível, passar um modesto 25.º aniversário cujos únicos luxos foram ter saúde, amor do que me estava perto e dos que me estavam longe (e que chegou em força por ondas electromagnéticas, abençoadas sejam) e um bolo de chocolate de peso, tamanho e preço pecaminosos. 

Paciência. É das qualidades que mais me faltam e das de que mais preciso. N., o nosso ex-senhorio (é verdade, deixámos a rua mais bonita de Palma hoje), tem-na de sobra. Ontem passou quatro horas a limpar a bicicleta de três mil euros que pesa menos dez vezes do que eu (que, na contrapartida do dinheiro que tenho, cada vez peso mais), passa outras tantas horas a arreglar os móveis que decora e a tocar batuques. Gabo-lha. E a bondade, e a organização, e o bom aspecto. Gabo-lhe tudo, até a estranheza de me tentar convencer de que o furacão Sandy foi provocado para que Obama ganhasse as eleições, entre outras teorias da conspiração. Foi bom viver em sua casa. Agora, à maneira caótica do mundo, estamos num limbo chamado "bairro acima da Plaza de España", numa casa agradável que partilhamos com a russa A. e o seu gato Casper (na verdade, uma das razões pelas quais respondemos ao anúncio foi o sentido de humor de uma das regras da casa: «No cat killing»).

Amanhã ou depois decidimos o que fazer. Ou a vida decide por nós. Não tenho jeito para a instabilidade. Paciência.

domingo, 4 de novembro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 04-11-2012

Não foram dois ou três dias; vai no sétimo, e só agora começa a dar sinais de abrandar. Mas tão pouco foi de mata-caballos, como diz N., o senhorio: pelo menos não me matou.

Mas abalou-me muito. Foi forte, grossa, traiçoeira, viciosa, brutal, repelente. Pôs-me quase de rastos - na quinta e na sexta-feiras o quase é dispensável - e deixou-me fraco, exausto, partido.

Mas teve uma vantagem: descobri as virtudes miraculosas do chá de cebola contra  a tosse. Até hoje nada tinha visto de melhor. E descobri as qualidades anti-tudo e pró-vida da Tatiana. Enfim, essas já as conhecia, só nunca as tinha visto postas em prática com tanto carinho e eficácia.

De maneira agora emerjo de uma semana por assim dizer difícil. Só não o foi mais porque ao quase de quarta-feira - que ainda não se apagou - um outro se veio juntar. Não se excluem, e seria justo que nos caíssem os dois; mas o mundo não costuma ter achaques de generosidade desta dimensão e com uma das duas já nos satisfaríamos e muito.

quinta-feira, 1 de novembro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 01-11-2012

E pela primeira vez em muito tempo tenho uma gripe; uma daquelas teimosas. Já por duas vezes me levantei, e por duas vezes ela me mandou de volta para a cama. Odeio estar doente. Só me apetece estrangular os vírus todos um a um, afogá-los em chá de limão, besuntá-los de mel, engrossá-los com vinho tinto.

Triste maneira de celebrar o quarto de século da Tatiana, que o festeja hoje, coitada; mas enfim, o século tem muitos quartos, muitas salas, corredores, cozinhas, caves e sótãos. Temos muito tempo para explorar algumas dessas divisões.

Ao menos as escapadelas serviram para algumas coisas boas - uma das quais descobrir o Bar Dia, um prodígio de qualidade e preços baixos em plena Llotja, o quarteirão mais turístico de Palma; outra foi confirmar o Ca na Chinchilla como uma grande bodega - em itálico para não haver confusões. Fomos lá ontem para celebrar a partida do G. e da A. Vão para Antigua via Polónia (A. é polaca). Em breve seremos nós, espero; e que a nossa festa seja tão agradável como a deles.

É uma via crucis, mas pelo menos as estações são agradáveis.

Os nossos amigos vão-se todos embora; no final do mês que hoje começa pouca gente haverá que conheçamos. E poucos barcos, também. Temos duas semanas no máximo para encontrar um embarque. Felizmente, após uns dias de interrupção, reapareceram alguns quase. Gostava de confirmar um e depois ir a Portugal passar meia dúzia de dias. Parece-me um plano sensato e espero que o ou os tipos que coordenam as coisas lá por cima partilhem esta opinião. Se é que há alguém a coordenar isto, coisa em que nunca acreditei e cada vez menos.

Visto de longe e quase só pelos blogs Portugal é giro. Parece composto por bandos de galinhas que ouvem um grito num lado e fogem apavoradas, cacarejando muito, para o outro sem sequer tentar perceber o que foi esse grito; depois cheira a milho e lá vão todas, cacarejando muito outra vez, ver se lhes calha um grão. Andam sempre juntas, cacarejam sempre muito, não conseguem ir mais fundo do que o buraco que o bico faz no chão quando esgravatejam quaquer coisa para comer. Permanentemente entre gritos que as apavoram e  milho que as atrai.

E a cacarejar muito, sempre, ininterruptamente, indignadas.

De modo é assim: enterrar a gripe, arranjar um embarque e ir a Lisboa. Acordar no mar, que tanta falta faz. Pode começar já, por favor.

quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 24-10-2012

Pela primeira vez na vida achei uma bebida num bar demasiado grande. É preciso contextualizar, claro: a véspera tinha sido de chuva, aquela que nos Estados Unidos é verde e na Europa é cada vez menos. Abrigámo-nos em tudo quanto é sítio: pintxos no Lizarran, jantar na Taberna do Caracol (um endereço  a reter absolutamente) e - no meu caso, a metade pensante de mim estava cansada - noite no Bluesville. De modo no dia seguinte pedi um meio Ricard (sim, existe) no Antiquari para abrir o apetite, coitado, que estava um bocadinho fechado e a rapariga - uma mexicana muito bonita, suave, discreta - encheu-me um copo gigantesco daquilo. Deu para dois bem puxados, e como a jovem metade não gosta de pastis lá tive eu de me sacrificar, como sempre. 


Mas a verdade é que foi muito, dois Ricard antes de um almoço de depois da chuva.

Há uma relação entre a evolução e a bicicleta, pensei nisso o dia todo. Talvez apareça um dia uma coisa que se adapte melhor às deslocações urbanas do que a bicicleta - um Segway menos ficção científica, uns patins menos escultura viva ou brincadeira aplicada, qualquer coisa -; mas por enquanto a bicicleta parece-me o propósito da estação vertical. Temos duas pernas porque temos duas rodas e dois pedais para as complementar (e isto digo eu e não acredito em teleologias, sejam elas quais forem). É bom andar de bicicleta, quase tão bom quanto navegar.

O mini-restaurante Casa Julio ("Uma casa de comidas moderna", diz o título de um artigo de jornal que está emoldurado numa das paredes) confirmou: é um grande restaurante, no qual, após madura reflexão (retratada na fotografia abaixo) a jovem e pensante metade de mim concordou que a ideia de irmos a Portugal ver o nosso amigo Júlio não era má ideia, antes bem pelo contrário.


E eu lá bebi um copo de vinho tinto, para celebrar (antecipação dos muitos que vamos beber em Évora).


Hoje o passeio vai ser de carro. Também é bom.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Palma de Mallorca, Baleares, Espanha, 23-10-2012

«Esta cidade de bicicleta é outra coisa.» Tens razão. Gosto de coisas fáceis. Falmouth Harbour, por exemplo: chegar ao trabalho a pé em cinco minutos, chegar ao supermercado a pé em cinco minutos, chegar à praia a pé em cinco minutos, chegar ao bar a pé em cinco minutos, ter o mar no quintal. Palma de bicicleta é tão fácil que consegue fazer crescer a nossa simpatia por ela, coisa muito difícil. 

Mas mais difícil parecia ser conseguir alugar as bicicletas (pesadas, sem mudanças mas adequadas às ciclovias e estradas da cidade, muito planas e sem surpresas): primeiro, pediram-nos fotocópias dos documentos de identificação (o cubículo não tinha fotocopiadora); depois, as fotocópias não serviam, era preciso dois passaportes em vez de um passaporte e uma carta de condução -- eu prefiro deixar o passaporte em casa, não vá perdê-lo, de maneira que tive de ir buscá-lo a casa; à terceira foi de vez, mas demorou eras, porque a senhora não se decidia sobre que bicicletas nos entregar (uma delas, afinal, até tinha o cadeado avariado) e íamos ficando com o troco adiado, porque a senhora não o tinha àquela hora da manhã. Uma hora e meia depois pedalámos a caminho do Club de Mar, para fazer dockwalking (uma prática relativamente humilhante que consiste em ir de barco em barco pedir trabalho) e enfim, esta cidade de bicicleta é outra coisa. O frio outonal da manhã transformou-se rapidamente em calor. A viagem que nos levava quase uma hora a pé e uma eternidade imprevisível se esperássemos pelo autocarro fez-se em 15 minutos. Muitos barcos e conversas depois o desânimo desapareceu quase por completo: encontrámos conhecidos, enviámos CVs e tivemos alguns nãos, que são pelo menos mais certos que muitos talvez.

Fiquei a conhecer, ao almoço, a Casa Júlio onde decidimos, se a vida nos deixar, ir visitar o Júlio a Évora em breve. A comida estava uma delícia e os sorrisos dos empregados também. Não há nada melhor do que um restaurante sem turistas numa cidade turística, tirando, talvez, a casa de alguém que nos espera com a mesa posta.

À tarde, fizemos um passeio de bicicleta até ao Arenal. Uns oito quilómetros apenas, sempre à beira-mar, passando por praias e pueblos, novos de bicicleta, trotineta, cães de trela e velhos de bengala ou cadeira de rodas conversando com quem os cuidava. Os maiorquinos, tenho reparado, tratam bem os seus velhos. Dão-lhes carinho e atenção e, sobretudo, acompanham-nos na rua. Há muitos velhos sozinhos, mas os que estão acompanhados por gente mais nova são incomparavelmente mais do que os sozinhos, geralmente de aspecto mais teso que vulnerável. Gosto de uma terra que cuida dos seus velhos. Tenho saudades dos meus -- das minhas, agora, que os meus já estão, dizem, num lugar melhor.

O pôr-do-Sol na Baía de Palma é inesquecível como todos os outros. Ver algo de singular no mais banal e repetido dos fenómenos é como andar de bicicleta: nunca se desaprende.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 19-10-2012

Até que finalmente comecei a ouvir (enfim, a ler) nãos. Fiquei contente: um não é um sim que se enganou na porta; e muitos nãos fazem sim. Mas não há quantidade de nadas que dê qualquer coisa.

A vida em Palma-a-afável continua: procurar um embarque, passear (às vezes confundem-se; outras não), procurar um embarque, ler. Desta vez o dinheiro acabou-se antes de o trabalho chegar, mas como é só uma breve interrupção vamos aguentando com esses grandes pilares de uma alimentação económica que são massas, ovos e pão. Em breve voltaremos às tascas, aos pintxos, cañas, tapas, cava e vinho tinto. É como no mar: de vez em quando temos de rizar pano, pôr de capa e aguentar.

Depois desfazem-se os rizos, iça-se o pano todo e fala-se sobre o que aí vem, não sobre o que passou. E o que aí vem é bom: descobri que já não quero voltar para as Caraíbas. Quero ir para Antigua, é diferente.

Quero ir passear a English Harbour, beber copos no Mad Moongose, acordar no Reef Gardens






jantar no Rum Baba e (quando o rei faz anos ou as gorjetas forem boas) no Sun Ra. Aos domingos quero ir ouvir-te cantar a Pigeon Beach



comer uma pizza ao Road Runners


brincar com o Lager, um cão que assim de repente é parecidíssimo com um gato


e sobretudo beber uma quantidade infinita de rum no Skullduggery


a olhar para



Isto das raízes é uma treta. Podem plantar-se onde quisermos.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 18-10-2012

Uma pessoa volta a casa e só lhe apetece praguejar. O Bob Dylan da Costa de la Pols é insuportável. Começa, invariavelmente, com "Knocking on Heaven's Door" -- pela meneira como canta, não me surpreende nada que não o deixem entrar -- e termina com "Baby Can I Hold You Tonight", uma profanação violentíssima do original de Tracy Chapman. Só sabe três acordes e aprendeu-os mal. Consegue transformar a belíssima "Angie", dos Stones, numa atrocidade chamada "Angel". A prova de que Deus é injusto é ter posto "o pior músico de Espanha" (nas palavras de N., o nosso senhorio, músico a sério) numa das suas ruas mais bonitas, a nossa Costa de la Pols. Das outras provas não vale a pena falar, todos as conhecemos.

Os dias foram demasiados e demasiado longos para deles falar. O D. é um barco antigo, decente, com espaços amplos e confortáveis, mas a tripulação não se entende. Senti-me atirada a uma trincheira antes mesmo de ter pisado o convés para a entrevista: encontrei num bar de Palma uma jovem conhecida que tinha acabado de sair do D. a mal e me fez ter vontade de não chegar a ser contratada. Quando cheguei percebi que achava cada um dos indivíduos da tripulação uma criatura impecável, mas que entre eles o ambiente era de cortar ao machado. Não foi fácil ser interrompida enquanto polia copos de tinto para me virem falar mal de A ou B, sabendo que eu só iria ficar no máximo dois meses a bordo. Fiquei um. O anúncio era para dois meses, mas fizeram-me um contrato de um com a explicação "se o dono gostar de ti ficas". O tanas, apesar de o dono ter gostado de mim. Cumpri o contrato até ao fim, fiquei a conhecer Valleta e passei uma hora em Paris, onde comi une baguette de camembert avec un verre de rouge. Estou a tentar tornar-me uma mulher sofisticada, já só me falta falar francês, usar maquilhagem, saltos altos e conseguir ter opiniões sobre política internacional. Verve não me falta.

A entrada no porto de Malta ficou-me no coração. A estibordo estava Valleta, árabe e barroca, com uma luz que desafia a de Lisboa com dignidade. A bombordo Birgu, o nosso porto, uma língua de terra amuralhada, com edifícios marcados pela guerra (os ainda destruídos e os recuperados na mesma medida) e uma frente de mar turística, com um casino e vários restaurantes. Em vez do táxi aquático até Valleta (3€ de ida e outros tantos de volta) optei pelo autocarro (2,60€ um bilhete diário e uma vista mais profunda da ilha). Fui com O., a cozinheira russa que também me ficou no coração, não só pelo que cozinha mas pela maneira fascinante como pronuncia o meu nome (entre os vinte diminutivos diferentes, Tanitschka foi o que mais me agradou, vá lá saber-se porquê).

Malta tem alguns pretos. Não muitos, mas alguns. Comparado com Queluz, onde morava antes de me mudar para as Caraíbas (onde há alguns brancos), não tem pretos nenhuns, mas para O. tinha imensos. Dizia-me "Há tantos, que impressão!" e eu respondia-lhe «Por amor de Deus, tu vives na África do Sul». Respondeu-me que não vinha à Europa para ver pretos e eu demorei três dias a digerir a conversa e a tentar não pensar em O. como uma pessoa horrível. Afinal, para o povo dela os georgianos eram pretos, por terem sido escravos. Senti, pela primeira vez desde que ando nesta vida, um choque cultural. Os malteses impressionaram-me muito mais do que os pretos.

São todos relativamente feios e encardidos. Os narizes são os piores que alguma vez vi na vida (talvez o dono do D., judeu, tenha escolhido a ilha como base por causa dos narizes, não sei); as raparigas pintam-se demasiado, vestem-se pessimamente e são barulhentas, não têm graça nem discrição. Os mais bonitos são os velhotes e as velhotas, mas sempre dentro do desengraçado. Apesar de tudo, a gente é simpática, prestável, tem sentido de humor e inspira respeito: o mal que os malteses sofreram durante a II Guerra Mundial e o bem que, em contrapartida, isso fez à Europa é digno dessa admiração.

Valetta foi mais bombardeada num mês do que a Alemanha inteira durante a II Guerra Mundial, o que explica uma certa esquizofrenia arquitectónica de que ainda hoje padece -- sem na verdade padecer, porque algumas misturas são tão surpreendentes que não conseguimos decidir se as adoramos ou detestamos. A sua posição estratégica fez com que fosse ocupada e disputada desde sempre pelos povos mediterrâneos. Pisar-lhe o chão, ver-lhe a luz e a trovoada é outra prova de que Deus é injusto: há privilégios que deviam ser de todos.

Agora volto ao de sempre. Sei para onde quero ir mas não sei para onde vou. Procuro trabalho e paz (desde sempre, aliás). Para já, nem um nem outro. Mas se Deus é injusto, porque nos fez tão justos? N. acaba de atirar um balde de água anónimo ao Bob Dylan da Costa de la Pols, que o calou imediatamente. Antes já tinha tido a honestidade de lhe dizer "a tua música é uma vergonha" e "és insuportável". Como resposta, recebeu um "vai levar no...". Felizmente, a água lava quase tudo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 12-10-2012 (cont.)

Uma cidade revela-se quando as ruas estão vazias; tal como um bar, de resto. Cheios não há um que seja feio, ou mau. As ruas vazias permitem-nos fazer delas o que queremos; podemos imaginá-las há duzentos anos, imaginá-las no inverno que aí vem e durante o qual não estarei aqui, ou na primavera passada, quando as flores começaram a aparecer às janelas e os ombros das senhoras a ver o sol. 








Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 12-10-2012

Esteve a chover e é feriado. É uma boa combinação: as ruas ficam vazias e a luz bonita. Fui dar um passeio - mais precisamente passear a máquina fotográfica, farta de estar em casa.

Como sempre acabei numa das marinas. Pensei nos domingos em Genève nos quais me calhava escolher o destino do passeio familiar. "Lá vamos nós ver os barcos outra vez", ouvia-se pela casa fora mesmo antes de eu anunciar que íamos, oh surpresa, ver os barcos.

Em Palma há muito barcos e muitas marinas; escolher um destino seria provavelmente menos monótono para a criançada. Para mim não é, claro. Mas não há nada de metafísico nisto; é simplesmente falta de imaginação.




quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 10-10-2012

À frente do Antiquari - ou seja, imediatamente por baixo da nossa casa - está o Café Lounge (cito) Mari-Lin.

A rua terá talvez três metros e meio de largura, mas parece que estão em dois planetas diferentes. O Mari-Lin é quadrado, no sentido literal e no do antigo calão, square, branco, limpo. Tem uma esplanada grande (enfim, o maior possível) com as mesas ao longo do muro que separa a rua de umas escadas; durante o dia protege-as com chapéus de sol grandes, beiges, quadrados (claro). A empregada é uma loira incaracterística (às vezes acontece) que anda muito direita, com os seios a abanar e a travessa por cima da cabeça, como se tivesse medo que chova e os seios fossem limpa-pára-brisas preventivos. A clientela é constituída na sua maioria por turistas; a minoria são casais square, grupos square; é raro haver uma pessoa só a uma mesa, e quando há é, terão adivinhado, square.

O Antiquari tem uma esplanada minúscula - duas mesas, às vezes três. As pessoas sentam-se nos degraus da escada (em Palma há muitas ruas que são, ou têm, escadas como Lisboa). Vêem em grupos grandes, em pares, sozinhas. Só ao meio dia, quando abre, há alguns turistas; depois a fauna local toma o local de assalto e a de fora senta-se nas mesas em frente, tristonha. Por dentro é castanho, escuro, vivo, pequeno.

Não sei se as mulheres do Antiquari são mais bonitas do que as do Mari-Lin. Os nomes prestar-se-iam a alguns interessantes jogos de palavras, se se quisesse. Desde que cheguei entrei duas vezes no vizinho de baixo - uma delas para ver se havia net, porque a que temos em casa é-nos fornecida, simpática e involuntariamente por ele. Ao Antiquari vou muitas vezes - como hoje, beber um Hierbas Tunel, bebida na qual estaria viciado, se fosse de vícios; ou pensar que a tristeza se dissolve melhor no degrau de umas escadas a olhar para tristes do que no meio dos tristes a olhar para gente como nós.

Ou ouvir Hildegarde von Bingen seguida pela Orchestra Baobab e pensar na quantidade de planetas que habitamos.

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Às quartas o Antiquari organiza um Clube de Línguas: pessoas que falam uma determinada língua juntam-se com quem a quer aprender e passam uma hora ou duas, não vi bem, a conversar, contar histórias, trocar experiências ou expectativas.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 05-10-2012

Porto

Fui a um restaurante sugerido pela mais portuense das minhas amigas, e amigos. Chama-se O Buraco e fica na rua do Bolhao (estou sem tis, por uns dias). Todos os restaurantes deviam ser assim. O senhor Manuel, que suponho seja o dono, cumprimenta todos os clientes que entram pelo nome ou pelo título. Pergunto-lhe "o que vou comer" e ele diz-me que tem uma feijoada muito boa. É um understatement, modéstia tao louvável como excessiva. Para beber o empregado pergunta-me se quero beber um verde tinto "feito pela casa". O vinho é excelente, picante, complemento ideal da feijoada.

É proibido vendê-lo. Mesmo admitindo que a ASAE mais nao faz do que aplicar a legislaçao, por que nao se a altera no sentido de permitir a venda do fruto do trabalho e dedicaçao das pessoas? Podia por exemplo tornar-se obrigatório a informaçao de que o produto é caseiro; quem quer come quem nao quer compra outro.

Foi uma passagem muito curta, demasiado curta. É bom saber que ha uma linha aérea directa e barata para lá.

Palma
O Antiquari é uma mistura de Café Tati, Café Buenos Aires, Marchand de Sable e mais meia dúzia doutros cafés cujo nome agora me escapa, mas sao bons, bonitos, conviviais, com boa música e melhor ambiente.

É aqui que espero N. pois nao levei as chaves de casa para a viagem. Ainda esta calor em Palma, a cidade está na rua, bonita e sorridente. E eu nela, como se aqui tivesse nascido.

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Agora temos um músico residente nas escadinhas à frente do Antiquari. É lamentável, coitado, o senhor. Toca mal e canta pior, com uma voz fanhosa, cançoes de Bob Dylan, Beatles, Neil Young ou Eric Clapton. É tanto pior quanto partilho a casa com dois músicos, um dos quais, pelo menos, excelente; e tenho uma namorada que canta melhor (e mais raramente, infelizmente) do que escreve.

Só dou dinheiro a músicos de rua que tenham um mínimo de qualidade - por isso apoio a política do metro de Paris de seleccionar quem nele toca - e agora encontro uma razao suplementar: solidariedade com os moradores das redondezas.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Lisboa, Portugal, 02-10-2012

Às vezes parece-me que a minha residência principal é um aeroporto qualquer, um aeroporto-todos-os-aeroportos do mundo; e tudo o resto - barcos, hotéis, quartos - não passa de residências secundárias.
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Durante o quarto o tempo é deformável, irregular. Um gajo entra de quarto às três da manhã, por exemplo; uma eternidade depois são três e dez. Não acontece nada e num ápice são quatro, é preciso preencher o diário de bordo: posição, rumo, velocidade, vento, mar, dados das máquinas. Demora cinco minutos e quando acaba já são cinco da manhã e é preciso recomeçar. De repente são seis, o quarto acaba e o mesmo gajo começa a pensar que os quartos de quatro horas são muito melhores.

O quarto acaba. Oríon já não está onde estava às três; nem a lua, quase a rebentar, de tão cheia; nem o A., que entretanto já andou trinta milhas. Nada está no mesmo sítio, nada é igual. Daqui a pouco aparece o sol, as cores mudam, talvez o vento sei lá; talvez apareça um eco no radar, ou desapareçam os que lá estão.

Nada é igual, nem o passar do tempo.

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Um homem no mar não gasta dinheiro. A essa imagem - de que tanto gosto - do marinheiro perdulário há que acrescentar, sempre, a do marinheiro franciscano. Quanto mais não seja por falta de franciscas, o que é um bocadinho contraditório.

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Helletvoetsluis

A viagem acaba aqui. Por mim podia ter continuado três semanas, ou meia dúzia de meses.

O chauffeur de táxi vem buscar-nos de casaco e gravata, num carro também ele engravatado. É delicado, educado, conduz como fala, suavemente, sem solavancos. Não sou muito dado a comparações, mas é impossível não pensar nos chauffeurs de táxi de outras paragens.

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Amsterdam

Um dos meus objectivos era comer um  Nasi Goreng, ou Bakmie Goreng, com um monte de Sambal a acompanhar e a excitar tudo o que há de glândulas no corpo. Mas "já não há pure Indonesian restaurants como antigamente", diz-me um senhor da minha idade que vende flores (e o diz como se tivesse acabado de comer uma por engano). "Vai àquele chinês, também fazem pratos indonésios". Não fui; fui ao De Roode Leeuw, um restaurante lindo, bom e (surpresa) caro na Damrak, que "há cem anos serve autêntica cozinha holandesa" (dizem isto e não se apercebem do oxímoro) comer mexilhões.

Passei uma hora e meia em Amsterdam; não fiquei a morrer de vontade de lá voltar. Que será daquela cidade sem as tascas indonésias, agora substituídas por restaurantes argentinos, em cada esquina um?

E cheia de miúdos a fumar charros, como se estivessem a descobrir a Lua.

Vou de comboio de Rotterdam para Amsterdam. A Holanda é um país que só tem litoral, não tem interior. No meio do campo aparece volta e meia uma marina - e grande - ou um porto de batelões.

As placas de sinalização em Rotterdam indicam tanto as ruas como os números dos cais.

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De passagem em Lisboa, de novo. Mas estive cá há quatro dias. Quero ir-me embora. Uma vez vistos e conversados os amigos pouco me prende aqui. 

domingo, 23 de setembro de 2012

Portimão, Algarve, Portugal





Portimão, Algarve, Portugal, 23-09-2012

220912

Golfinhos na proa. Gosto de os ver porque estão a divertir-se como loucos. Dois deles lutam pela posição mais perto da roda de proa. A agilidade destes animais é impressionante. Que estão a divertir-se é um facto incontestável; mas a impressão é acentuada pela expressão: parece que estão a rir-se, embora isso seja pouco provável, pois nunca vi nenhum com ar sério. Mesmo quando estão visivelmente de passagem ou ocupados com outras coisas, como caçar (ou pescar? Não sei).

O serviço meteorológico espanhol é mais ou menos como o português, mas para pior. Nós ainda acertamos no tempo que fez ontem (apesar de eu nem sempre o reconhecer); eles nem isso. Vams com um levante força 3, tinham previsto poniente 4... O que eu não percebo é que continuam a difundir a previsão, que data de ontem à noite, como se nada fosse. Já me tinha apercebido disso durante a viagem do SOGNO, e agora confirma-se.

É meio dia e a habitual luta entre o nevoeiro e o sol está no auge. Espero que ganhe o sol, claro, mas devo reconhecer que gosto deste monocromatismo cinzento (ainda há um bocadinho de visibilidade, milha e meia, duas milhas).

A norte vê-se bem Tarifa, que estamos a passar; a sul nada: uma parede cinzenta com manchas de luz dispersas aqui e ali, cinzentas elas igualmente, se bem mais claras. Cinzento a bombordo, azul a estibordo - o cenário não é monocromático, é bicromático.

Gosto destes barcos de deslocamento pesado. Um gajo não tem a impressão de estar a gastar gasóleo para nada: 80 litros / hora para fazer 10 - 11 nós.

Não gosto de ouvir música quando estou de quarto; mas tanto A. como R. o fazem. Têm ambos um bom gosto surpreendente, pouco habitual nestas paragens. Escrevo estas linhas ao som de Muddy Waters (é o quarto de A.); R. deixa-me regularmente o computador, ou o iQualquercoisa. Vai de Cat Stevens a Jimi Hendrix, passando por tudo o que eu ouvia quando tinha a idade dele. Oiço cinco ou dez minutos e depois apago-o. Prefiro abrir a porta da ponte e ouvir o mar.

Enfim, não é bem o mar: é o diálogo do A. com o mar.

O levante cresce e o sol ganha, pouco a pouco, dificilmente, a batalha. Em breve a paisagem será monocromática e bitonal: o azul do céu e o do mar. Entro de quarto às quatro da tarde.Espero pelo almoço para ir dormir a sesta. Há pessoas que acham o mar monótono. Provavelmente são as mesmas que não acham a terra mortalmente aborrecida.

23-09-2012

Sobretudo se for Portimão, que nesta tarde de domingo chuvosa e triste é uma desolação. Salvam-na a simpatia e eficácia do pessoal da marina, os doces da Casa Inglesa e pouco mais.

Como a memória das melhores sardinhas da minha vida, comidas no Forte e Feio  com o Júlio. Ou a da Ambassador Cup, talvez não a maior, mas de certeza a mais bonita e mais espectacular desgraça que cometi (estamos atracados no pontão onde fizemos o desenho dos barcos que participaram).





Autoretratos diversos.