quarta-feira, 30 de maio de 2012

Marigot, St. Martin, 30-05-2012

Não me atrevo a dizer "Hoje é o último post de Saint Martin". Isso quereria dizer que perdi a esperança de voltar -- ainda não, porque a esperança é uma doença quase incurável. Direi, por isso, "Até Outubro, St. Martin", se Deus quiser

O armador saiu um dia depois do que tinha anunciado, para desespero de toda a tripulação e restante criadagem. O dia de ontem, aquele em que não partiu, foi interminável -- como têm, de resto, sido todos os meus dias aqui desde que esta viagem começou (resta-me perguntar se o conceito de viagem inclui isto que fazemos, não ir praticamente a lado nenhum, ficar nos lugares que já conhecemos sem os viver, não tirando deles mais do que uns minutos de vento que não é, felizmente, igual em todo o lado). Fiz uma bolognese impressionante no micro-ondas (impressionante exactamente por ter sido feita no micro-ondas), deixei cozer a massa de mais, comi todo o chocolate que o Luís me trouxe (não foi do Brasil, suponho que tenha sido do aeroporto) e mais algum que consegui encontrar. A ansiedade dá-me para comer, a angústia para não comer. A angústia já passou.

Os senhores despediram-se de mim com um «see you soon», como se me fossem ver na próxima "viagem". O pedido de desculpas não veio, claro, e o salário também ainda não. Há três coisas nesta família que me deixarão saudades: o sorriso do bebé quando lhe digo um disparate qualquer; o acenar do outro bebé pela manhã, que sabe que não falamos a mesma língua mas quer, ainda assim, comunicar; poder ficar com as caixas da Hermès que eles deitam fora como se não fossem peças de design extraordinárias para guardar pares de meias ou elásticos de cabelo, sei lá.

K., o cozinheiro, deu-me um abraço tão apertado e comovente que levou S. a dizer «get a room!» (às vezes sinto-me outra vez no liceu, só que ainda mais desajustada do que quando não sabia responder às piadas parvas da miudagem com quem nunca me identifiquei). Também vou ter saudades dele, e de ver M. atirar-se à água de cuecas porque perdeu uma aposta com o patrão.

O barco que vou deixar vai passar metade do Verão em Antígua, a terra que eu, em tão pouco tempo, aprendi a amar como se fosse a minha, onde fui mais feliz do que na minha, onde gostaria, um dia, de ser mais feliz ainda -- a esperança, já o disse, é uma doença quase incurável. Será que voltarei a sentar-me ao balcão do Mongoose e beber o melhor rum punch do mundo preparado com carinho pela Connie ou pelo Junior? Verei outro fim de dia do gazebo do Reef Gardens contigo e o gato Lager ao pé? Comerei outra refeição magnífica feita pelo Serge no Rum Baba? Abraçarei a Ilaria por me ter contratado com um ano de antecedência para cantar na noite de São Valentim? Ouvirei o clarinetista John tocar no Café Club enquanto seduz uma ou outra senhora à frente da mulher? Conhecerei mais mil pessoas diferentes que me sorrirão como se fôssemos amigas desde o princípio dos tempos, como aquela senhora adorável que adora Sintra e dança como se tivesse um Fred Astaire dentro dela mas ao mesmo tempo lhe faltassem os parafusos todos?

Na segunda-feira parto. Daqui para Charlotte, na Carolina do Norte, onde passo a noite; na tarde seguinte, de Charlotte para Toronto, onde vou estar duas horas com a minha querida L., que não vejo há tanto tempo, desde que emigrou; no mesmo dia, de Toronto para Ponta Delgada, onde chegarei na manhã do dia seguinte; à tarde, apanho um voo para a Horta onde espero embarcar no DARK HORSE, se Deus quiser

Por favor.

sábado, 26 de maio de 2012

Gustavia, Saint Barthélemy, 26-05-2012

-- You are reckless! This is your salary, did you know that?

Limpar sanitas de ricos não é uma humilhação. Nem sequer apanhar as suas cuecas do chão. Muito menos o é ver o trabalho (duro, sem folgas) de um mês comparado com um objecto caro e piroso desenhado por uma das mais famosas casas de moda da nossa praça. A humilhação não pode ser infligida, apenas sentida. Aprendi isso nos últimos cinco dias (felizmente, só demorei 24 anos a aprendê-lo). Quando somos adultos e a nossa consciência funciona, não podemos ser magoados, apenas sentir-nos magoados. Parece um pormenor, mas faz toda a diferença. A humilhação que sofri só é real porque a senti. Saída da boca do meu patrão não é nada; só existe quando entra nas minhas células e causa a reacção de nojo que me causou. Isto é válido para a maioria dos sentimentos (vergonha, abandono, até amor), a menos que sejamos crianças. Quando somos crianças, o que os outros nos dizem é tão real como aquilo que sentimos. É por isso que educar uma criança é a tarefa mais difícil e mais subvalorizada de todas. A maioria dos pais faz o melhor que pode (aposto que os pais do meu patrão fizeram o melhor que puderam), e mesmo isso não parece suficiente. «You who must leave everything that you cannot control/It begins with or family but soon it comes round to your soul», canta Cohen. Ter-me libertado da humilhação que senti quando ouvi aquelas palavras significa que é possível controlar o poder das palavras dos outros. Resta-me aprender a controlar o das minhas.

Os barcos são meios de transporte. Uma pessoa pode chamar a um barco a sua casa, fazer dele a sua casa, mas isso não modifica o seu carácter: um barco é um meio de transporte. Se uma casa for sacudida por um terramoto, há uma possibilidade de os objectos que ela contém caírem e se destruírem. No mar existem ondas, equivalentes para um barco a pequenos terramotos. É por isso que a maioria dos mega-iates (usados como casas, como hotéis) têm tudo pregado ou colado às superfícies. As mesas e os sofás estão presos ao chão, os candeeiros às mesas, os objectos decorativos às prateleiras. Quando as coisas não estão coladas e o barco está em movimento, colocam-se num lugar onde se acredita que não se vão partir. Na última vez que viajámos, coloquei o objecto que se partiu entre dois almofadões de uma poltrona, onde sabia que estava seguro. Quando voltei ao camarote, onde o dono tinha estado, o objecto estava no chão. Parti do princípio de que, ainda que estivéssemos em movimento, o dono não queria o objecto onde ele estava, e preferia que estivesse no chão. Passei a colocá-lo sempre no chão. Fez algumas viagens curtas sempre no chão, sem se partir. Ontem partiu-se e o armador passou-se, perguntando-me porque não o tinha posto em segurança. É claro que não me deixou responder.

Acredite o leitor, se quiser, que não se perdeu nada. Tive mais pena das orquídeas que estavam no vaso e se despedaçaram com o impacto do que do vaso em si, da perda do dono ou do trabalho que tive a limpar a merda da carpete manchada de terra húmida. Sempre que olhava para a coisa achava que o mau gosto não tinha limites, ideia que só confirmei quando o armador terminou a "conversa" com a boca sobre o meu salário.

Disse ao capitão o que me fora dito, que o armador queria falar com ele. Informei-o de que estava mais do que disposta a abdicar do meu salário, mas que se o caso fosse esse desembarcaria no momento, porque não só não podia ser acusada de um acidente como não via necessidade de pagar com o meu salário e com o meu trabalho. Para meu espanto, quando o capitão voltou anunciou que o armador lhe tinha pedido desculpa pela maneira como falou comigo e que não queria tirar-me o salário. Não tentarei, sequer, perceber porque não me pediu desculpa a mim.

Desde que Gianni morreu que a Versace nunca mais foi a mesma.

segunda-feira, 21 de maio de 2012

Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 21-05-2012

Hoje é o último post de St. Martin. Depois do almoço largo para o Reino Unido, via Açores, no S/Y DARK HORSE, um magnífico Southern Ocean 60. Se tudo correr bem, dentro de duas a três semanas estarei na Horta, a beber um gin tónico.

sábado, 19 de maio de 2012

Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 19-05-2012

Todas as marinas têm um restaurante cujo mercado são as pessoas que nela trabalham, os marinheiros entre dois embarques, todos aqueles que não estão de férias. Na marina Royale, em Marigot, esse restaurante chama-se Le Sous-Marin e hoje fui lá jantar. Inequívoco sinal de que aterrei em St. Martin, e estou em casa. E em França, a França de que gosto, a França do bom gosto barato, da simpatia real, humana - por oposição à simpatia profissional, pré-fabricada, quero dizer -.

O senhor do Sous-Marin - um lugar um bocadinho tristounet, verdade seja dita, mas onde se come muito bem e barato - é casado com uma portuguesa de S. Pedro de Alva. Não sei onde fica S. Pedro de Alva, mas algo me diz que na segunda-feira vou saber: ele mostrou-me uma brandade de morue e eu respondi-lhe com um bacalhau assado no forno. Não que seja dado a saudades, mas a ideia de ter uma senhora a fazer-me um bom bacalhau no forno enche-me as medidas todas, tão por baixo que elas estão, coitadas.

A felicidade é uma sucessão de momentos que se devem agarrar, um a um; e acumular antes que fundam como chocolate ao sol, o que inevitavelmente acontecerá.

Procuro um trabalho para o verão. As possibilidades são muitas: desde o Pacífico às Maldivas, passando (claro) pelo Mediterrâneo, pela Alemanha (é o destino de um barco que vai sair em breve dos Estados Unidos com o qual estou em negociações) ou, mais modestamente, Trinidad, aqui ao lado. Não sei qual delas prefiro. Nenhuma, na verdade: todas me atraem igualmente. Preciso de navegar, só. Onde e porquê interessa-me pouco. [Vou ter de dizer não ao da Alemanha, apesar da viagem ser magnífica: "...up the eastcoast to New Foundland, Greenland, Iceland, Faroes, Shetland, Norway into the Baltic to Germany". Paciência. Não estou - nunca estarei - em maré de partilha de custos, excepto com amigos, e próximos].

Ou seja: o mundo desfila-nos à porta como um metro com um condutor bêbedo.  Às vezes o senhor lá consegue acertar com uma paragem e abrir as portas; às vezes essas portas abrem-se à nossa frente; às vezes nós damos o passo em frente antes de o condutor bêbedo do metro as fechar de novo. E lá vamos, numa viagem de que não conhecemos o fim; mas sabemos que tudo é melhor do que estar na paragem do metro à espera que passe o próximo.

Acredito muito no destino que fazemos, e pouco no que sofremos. 

quinta-feira, 17 de maio de 2012

Marigot, St. Martin, Antilhas Francesas, 17-05-2012

Apanhei o avião na Segunda-feira dia 14, à tarde; ele chegou uma hora depois, mas eu só aterrei ontem. Un léger décalage, diria um francês. Três dias a décaler: accras, boudin créole, colombos divers, assiettes créoles, vinho tinto e branco, pastis (enfim, Ricard), rhum vieux, rhum blanc, tartines, civilização sob todas as suas formas, tudo isto culminou ontem num braai a bordo do J., o mega-iate onde a metade pensante de mim trabalha muito, de mais, e se diverte um pouco.

Um braai para um sul-africano é muito mais do que um barbecue para um francês, um barbeque americano, um churrasco em Portugal. É identitário; a comparação que me parece mais próxima é a do churrasco gaúcho. Um dia em Kindu propus aos pilotos - uma equipe sul-africana - que fizéssemos um braai. Andy, o co-piloto, olhou para mim zangado e respondeu "com que direito usas a palvra braai?" As condições eram dificeis, é preciso dizê-lo; quase todos os dias nos atiravam para o avião, e se bem nenhuma bala tenha furado a blindagem o barulho (um blang surdo, que me fazia pensar nos livros que li sobre submarinos e de como eles recebiam o bling dos sonares) acabava por se tornar maçador.

Disse-lhe que era de Moçambique, e fui aceite.

Ontem o braai estava magnífico. Estava também a tripulação de um monocasco de 74' lindo e consegui, finalmente, tirar de mim o Brasil.

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Preciso dizer que a viagem de avião foi muito bonita: na primeira parte, de Belém para Guadeloupe, havia praticamente todas as nuvens do catálogo. Não vi cumulo-nimbus (felizmente); mas de resto estavam todas.

No dia seguinte, da Guadeloupe para St. Martin, o reflexo do sol fazia do mar um tapete brilhante, prateado, sulcado pela ondulação como se estivesse lavrado. Nessa folha branca, ou cinzenta muito clara, brilhante, havia por vezes um buracos, crateras negras, claramente demarcadas em três dimensões - era a sombra das nuvens.

Por vezes não havia nuvens, e os buracos negros tinham realmente três dimensões - eram ilhas, não ilusões de óptica fascinantes, hipnotizantes.

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De maneira já fomos a duas entrevistas e já temos emprego  para Outubro. Agora basta encontrar qualquer coisa até lá. Podia ser pior. 

segunda-feira, 14 de maio de 2012

Le Gosier, Guadeloupe, Antilhas Francesas, 13-05-2012

Bye bye Brazil? Eu já devia saber que no Brasil qualquer tentativa de gastar menos dinheiro resulta invariável e inevitavelmente em duas coisas: a) gastar muito mais do que o custo inicial e b) perder uma quantidade de tempo completamente desproporcionada quer com o custo inicial quer com o custo depois da "poupança".

Em São Luís lembrei-me de que estava no último dia do meu visto de turista e por conseguinte era necessário prolongá-lo. Como sempre estas coisas acontecem à última da hora do dia da partida. Apanhei um táxi e aí fui, a chicotear o motorista como num filme de cowboys. O trânsito naquele dia estava realmente infernal e demorei uma eternidade a chegar; pelo sim pelo não pedi ao senhor para me esperar, porque não sabia quanto tempo ia demorar e não queria arriscar-me a ficar sem transporte para a volta.

O processo foi de uma rapidez tal que eu devia ter desconfiado. O agente da Polícia Federal, onde estas coisas se tratam, perguntou-me quando é que eu saía do Brasil, eu disse "amanhã [sexta-feira] ou domingo", ele respondeu "então é melhor pagar a multa, porque se eu lhe fizer agora o prolongamento você vai pagar muito mais", eu perguntei "quanto é a multa?" "oito reais por dia" "e o visto?" "sessenta e sete reais" e eu pensei nos sessenta euros de táxi que ia pagar, mai-los sessenta e sete reais de visto e pensei "vou pagar a multa". Mas manda a verdade que antes de tomar essa decisão estive vai não vai para dizer ao senhor "não, eu prefiro pagar a multa"; mas depois pensei "porra, com um bocadinho de sorte ainda me vou embora amanhã e se calhar nem pago nada ou então pago oito reais e na pior das hipóteses pago vinte e quatro" e disse "ok, obrigado, nesse caso pago a multa".

Em Belém fui fazer o check in e a senhora disse-me que eu tinha de ir à Polícia Federal porque tinha excedido a estadia e eu disse que sim claro e ela sorriu "eu fico com o seu cartão de embarque porque só lho posso dar depois de você ter regularizado a situação" ao que respondi "não faz mal é sempre um prazer rever uma senhora bonita" e ela sorriu outra vez e eu fui à Polícia Federal, que é na outra extremidade do aeroporto. Quando lá cheguei o agente da Polícia Federal, a simpatia em pessoa disse-me que só podia fazer os trâmites depois de eu ter o check in feito e que tinha de ir buscar o cartão de embarque; eu expliquei-lhe que a senhora etc. e tal e ele respondeu tal e etc. e eu fui buscar o cartão de embarque.

Quando regressei iniciou-se um diálogo exploratório: eu queria saber exactamente as alternativas todas e as alternativas são de uma simplicidade aterradora, a saber:

a) "Só há dois sítios onde pode pagar, um banco e a lotérica" [mas hoje é domingo e estão fechados];
b) "Pode pagar no seu país se no país onde vive existir um Banco do Brasil" [não vivo em país nenhum, mas em algum por onde passarei qualquer dia haverá decerto uma agência do Banco do Brasil];
c) "Pode regressar ao Brasil e pagar na entrada, mas vai ser uma complicação muito grande, o seu passaporte vai ficar retido e vai ter de ir pagar" [e eu imaginei-me logo a viver uma de Catch 22 tipo não pode entrar no Brasil enquanto não pagar e não pode pagar porque não pode entrar no Brasil].

Bom, seja como for é preciso fazer o auto e o senhor agente, que é, insisto, de uma simpatia arrebatadora pergunta-me o nome do pai, da mãe e a morada. "Qual morada, a minha ou a dos meus pais [o meu pai já morreu, mas não lhe vou dizer isso porque não quero introduzir mais energia no sistema]. "A sua". Dou a do Reef Gardens, de qualquer forma foi a última e quem me dera fosse a próxima em breve.

Três quartos de hora depois - não é uma imagem, na realidade foi um bocadinho mais de três quartos de hora o senhor agente apresenta-me cinco ou seis folhas de papel para assinar. Havia um termo de notificação, um auto de infracção (cada um destes em dois exemplares, um GRU - Guia de Recolhimento da União - e (na mesma folha) um recibo.

Uma vez assinados estes papéis o senhor agente teve de pedir a três colegas, dois dois quais que por milagre tinham acabado de entrar no escritório da Polícia federal, para assinarem também, porque o auto e o termo requerem quatro assinaturas - uma do agente que os faz e três testemunhas.

Na posse dos papéis todos ele, senhor agente diz-me "agora quando pagar ande sempre com o recibo" e eu digo-lhe "sim, claro" mas faço uma cara de estranheza, pois se aquilo está pago e ele lê a minha expressão e diz "é que isto não é pagar e depois fica liberado. Ainda leva dois meses, ou três, às vezes um ano para sair do sistema". Perguntei-lhe como é que é possível e ele fez uma cara de sofrimento e explicou-me que aquilo ia para Brasília e etc. e tal. "e durante um ano o seu nome vai ficar aqui nos sistema como tendo excedido a estadia".

O montante da multa é vinte e quatro reais, aproximadamente nove euros.

E quem não acreditar nisto pode ir ao site do Banco do Brasil e tentar encontrar uma cotação de câmbio. O percurso até se chegar à dita cotação é um monumento à incompetência, à doença mental, só um doente é capaz de organizar um percurso como aquele num site.

Bye bye Brazil? Não tão depressa, meu caro.

Durante um ano vou ter de andar com o recibo no passaporte (isto admitindo que um dia encontrarei onde pagar a malfadada multa, não vá dar-se o caso de ter que cá voltar, coisa que espero do fundo dos meus fundos não aconteça, pelo menos tão cedo para já).

O Brasil é uma gigantesca anedota, é uma potência mundial no campeonato do absurdo, e se isto é a quinta potência mundial eu sou a Miss Galáxia. E, ainda por cima, não é o meu país. Porque quando nós andávamos a dar cartas neste campeonato - e Deus sabe que demos e ainda damos muitas, Simplex ou não - eu pelo menos no meu país posso gritar esbracejar e ser sarcástico e lixar-me ainda mais por causa disso, mas que se lixe, fodido por fodido pelo menos que dê um bcadinho de gozo. Aqui não posso, claro, é comer e calar e agradecer ao senhor agente a simpatia.

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É fácil perceber a alucinante variação dos preços do bilhete na Air Caraïbes. Quando reservei o lugar, quinta-feira ao fim da tarde, havia, num avião de cem lugares, pouco menos de vinte ocupados; quando saímos, no Domingo, havia trinta livres. Cinquenta lugares vendidos em dois dias.

Em Cayenne o voo enche. Há duas escalas: uma em Cayenne, outra em Fort-de-France. Esta deixa-me um certo engulho, porque podia ter passado a noite na Martinique em vez de Guadeloupe. Enfim, não é uma tragédia. A verdade é boa e é que continuo sozinho na minha saída de emergência, com espaço para as pernas, para dormir e para ir para a janela quando levantamos ou aterramos. Podia ser infinitamente pior.

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A chegada à civilização não foi exactamente como eu tinha esperado. Por causa de uma conjunção azarenta entre o meu desinteresse por dinheiro e a minha por vezes excessiva generosidade (excessiva em relação às minhas posses, claro; porque o pessoal da Pousada Portas da Amazónia, onde passei um mês e quase meio, merecia muito mais do que o que eu lá deixei de gorjeta) cheguei à Guadeloupe com muito pouco dinheiro. Na minha cabeça as coisas passar-se-iam assim: um terço para o táxi, um terço para o jantar e um terço de reserva.

O táxi começou por me levar ao hotel mais longe do aeroporto que conhecia; o qual estava fechado. O seguinte também estava fechado; o terceiro exigiu o pagamento à chegada, pelo que tentei um quarto hotel. Neste - já a factura ia a mais de metade das minhas magras disponibilidades - disse-lhe para me deixar.

Mas a senhora da recepção foi inflexível: só dorme depois de pagar. Estava a ver-me a andar para trás no tempo, para aqueles tempos em que dormíamos num barco qualquer  da marina porque éramos novos e aquilo fazia parte do zeitgeist (enfim, do nosso zeitgeist. Não tenho a certeza de que os armadores o partlhassem a cem por cento).

Ainda por cima estava vesgo de fome. Desisti de tentar convencer a senhora da recepção (gostaria que houvesse um inferno só para poder desejar que ela lá ardesse até ao Armaggedon) e fui jantar. Já era tarde (quase onze da noite, o que para estas bandas é tardíssimo, tanto mais agora que estamos na época baixa).

Foi aqui que as coisas começaram a compor-se. Nada corre bem quando estamos com o estômago vazio. O jantar foi um colombo de frango ligeiramente inferior ao meu, mas mesmo assim muito bom. E depois tudo foi ao lugar: graças à colaboração da metade pensante de mim consegui encontrar um hotel que me acolheu sem pré-pagamento; o jovem do restaurante onde jantei deu-me boleia até à porta do dito e abençoado hotel; e - oh bondade divina! - o quarto é esplêndido.

Prometi ao jovem Jonathan que amanhã voltava a almoçar no seu restaurante; agradeci mil vezes a Ronald, o recepcionista do Canella Beach Hotel (e amanhã deixo-lhe uma gorjeta, de menor envergadura do que a da Pousada, mas que o não fará arrepender-se de me ter acolhido). E agora vou dormir, porque gosto muito de montanhas russas mas das a sério, não das metafóricas que se escondem num dia para nos fazer pensar que os contabilistas e os funcionários internacionais talvez não estejam completamente errados.

domingo, 13 de maio de 2012

Bye bye Brazil

Até à próxima, viu?

J'arrive

Une portion d'accras de morue et une autre de boudin, s'il vous plaît. Et un punch pour tout de suite. Apres un blaff de poisson et un pichet de blanc. Merci.

sábado, 12 de maio de 2012

Belém, Pará, Brasil, 12-05-2012

O dia foi de passeio. De manhã para os lados do rio, do mercado, do centro; de tarde para o lado oposto. 

Esta cidade é magnífica. Ver-o-peso deve ser dos mercados mais bonitos, maiores, mais apaixonantes que conheço - e é sem dúvida o que tem melhor vista. É enorme; divide-se por várias áreas, por vários edifícios, pelas ruas. Cheira bem, cheira mal, não cheira, fede, vende tudo e mais alguma coisa e mais ainda. Uma das áreas que não cheira mal é a do peixe, o que pelo menos prova que o peixe é fresco. O resto é uma sequência de barracas, stands, bancas - as da carne são lindas - pessoas aos gritos, música aos gritos, cores aos gritos, tudo grita naquele mercado, mesmo ao lado do rio Guajará, um dos muitos braços do delta do Amazonas. O rio - largo, lento, majestoso - é a única coisa silenciosa naquele mercado.

À tarde foi a vez das ruas largas, passeios larguíssimos - há quanto tempo não via passeios assim - mangueiras grandes e frondosas com as copas a tocarem-se num túnel alucinante, ruas pejadas de autocarros, uns atrás dos outros como só na Londres de antes da taxa vi.

Foi também dos esgotos a céu aberto, dos passeios nos quais não se pode andar a olhar para o ar sob pena de perna partida, ou pior, dos carros com sistemas de som que chegam para pôr um quarteirão inteiro a ouvi-los. Aquilo deve ser a versão brasileira de pôr as canções de que gostamos no Facebook, suponho. Mas no Facebook ouve quem quer, e a música daqueles selvagens ouve-se a centenas de metros - e é má, ainda por cima.

Há aqui um dissonância cognitiva: não consigo imaginar um país assim quinta economia mundial; não bate a bota com a perdigota.

Enfim, amanhã estarei na Guadeloupe, ou seja em França. Vinha a pensar que ali a dissonância é outra: como é possível gostar tanto de la France, e detestar ainda mais la Fraaaaaannnnce? Felizmente é para a primeira que vou, nela que me desloco e respiro; a outra só me chega pelos jornais e pela televisão, que só raramente vejo e leio, graças a Deus. E na qual não penso, porque la France enche-me as medidas todas, faz-me esquecer tudo o mais. Amanhã vai ser dia de vinho tinto, accras de morue, boudin créole, ti'punch e planteur. Dieu est grand et français, tu verras.

A televisão anuncia mais um escândalo com dinheiros públicos. Não há dia, não há jornal que não tenha o seu escândalo; nem o do Cachoeira - um bicheiro que tinha metade da classe política comprada - ofusca os outros. Não sei qual será o resultado disto; de vez em quando matam um jornalista - acho que a conta vai em seis nestes últimos anos - mas, verdade seja dita e honra lhes seja feita, os jornais e telejornais continuam a expor aquilo tudo. É um poço sem fundo.

O fantástico para mim não é que o façam; não sei quando começaram, sequer. É a dimensão e a profundidade da podridão. Esta classe política vê os cargos públicos como um atalho para o enriquecimento imediato; não espera, como a nossa e muitas outras, pela saída do governo para arranjar uns tachos valentes.

Demain la France.


sexta-feira, 11 de maio de 2012

Bequia, Grenadines, 26-02-2011


A coincidência foi eu ter pensado à tarde no facto de um gajo ser pago para ser ele próprio – o que não se aplica só aos charter skippers, claro; nada impede um, sei lá, funcionário internacional de ser pago para ser o que é (e ser muito mais bem pago, evidentemente) – e ao jantar, uma bolognese feita pelo Hollie, eu ter contado a história do jantar de Ancona e a Kathrin ter concluído “isso és tu”.

Já por aqui contei a história de Ancona: reduzida à moela, três suecos ricos dão-me boleia em Itália para Ancona e no carro eu conto-lhes o que fazia em Itália e como vivia.”É impossível viver com esse dinheiro por um dia; é o que cada um de nós gasta numa só refeição”. Palavra puxa argumento, argumento desafio e chegados a Ancona eu tenho a missão de lhes mostrar que sim, é possível. Na piazza vejo um grupo de velhotes a jogar a versão local da pétanque e peço a um deles, no meu então aceitável italiano, que me indique um restaurante bom e barato. Para reforçar, conto a história dos suecos. “Estás a ver aquela porta?”, pergunta um deles apontando para uma porta castanha, anódina, anónima. “Estou”; “então aparece às sete e meia (às dez apanhávamos todos o barco para a então Jugoslávia) com os teus amigos. Aquele restaurante é o que procuras”.

Quando abri a porta e entrei caíram-me duas partes constituintes do aparelho reprodutor até ao chão: era visivelmente um restaurante de luxo, e eu nem comendo pão com manteiga durante dez dias compensaria aquela despesa. À medida que o jantar se foi desenrolando as coisas continuaram pelo chão. O dono (por coincidência o senhor que me tinha indicado “aquela porta castanha”) preparara um menu para nós. Foi uma das melhores refeições da minha vida: lembro-me dos spaghetti al ucellini do primo piatto, do Barolo (creio; e se foi, foi a primeira vez que o bebi), da grappa com que terminou o jantar, mesmo antes de se propor levar-nos ao cais.

A conta foi: “o Luigi é meu convidado; para os senhores, cada jantar custa –“ e diz um montante que devia ser um décimo, se tanto, do preço normal daquele jantar e se integrava perfeitamente no valor que eu tinha dado aos suecos como sendo o preço médio das minhas refeições. Imagino que para os suecos ainda hoje devo ser uma espécie de deus da Itália, capaz de comer num restaurante de luxo, ser levado ao porto pelo proprietário em pessoa e pagar o preço de uma pizza nas tascas rascas que então (então?) frequentava.

"Isso és tu”, diz a Kathrin. Não creio. “Eu” é o tipo que é pago para ser skipper, para vos levar a ver a vida nocturna de uma sexta-feira em Bequia, para vos desenrascar quando metem o pé na argola no mercado, para vos reservar uma mesa no Gingerbread ou vos comprar uma lagosta de dois quilos e meio e com isso fazer uma salada para sete pessoas que não, não estava tão boa como vocês disseram, devia ter ficado duas horas no frigorífico antes de passar à mesa, mas enfim, estava comestível e quase se sentia a lagosta; não é o tipo a quem os deuses põem a mão por baixo e decidem oferecer uma flor, uma lindíssima e inesperada flor.

E agora na varanda do Captain Mack's Bar and Galley, um primeiro andar em Bequia com vista para a baía, que de tantos barcos com as luzes de fundeadouro acesas mais parece um prolongamento da cidade – e o prolongamento mais habitado – lembro-me de outra frase a meu respeito, na Ilha de Moçambique, estávamos todos, um bar bonito – acho, mas não tenho a certeza, que também era uma associação cultural – e começou a tocar uma música africana e a Karen diz “this man can move, given the right stimulus”, e eu pensei “o problema, Karen, é que só sei mexer-me se tiver os estímulos certos e eu queria aprender a mexer-me também com os estímulos errados”, e isso é muito mais “eu”.

De qualquer forma a verdade, a verdade única e verdadeira é que quero que a memória vá pentear macacos, apesar de estar sempre a pensar nela e nas coisas que me traz. A memória e não só, claro, há muitas coisas de hoje que também quero que vão para o diabo que as carregue, antes mesmo de passarem a soleira da porta da memória; como a miúda hoje no Mack's, a dançar comigo daquela forma completamente lasciva que elas aqui têm, e eu a certa altura tive de dizer-lhe “stop”. Ela parou logo, verdade seja dita, e aproveitou para me pedir uma cerveja; que lhe dei, claro.

Há festas por todo o lado, hoje, e os restos mesmo assim bastante altos das diferentes músicas chegam a bordo um bocado entrecortados pelo vento. O tempo continua uma porcaria e não é quase de certeza amanhã que saímos para Canouan. Paciência; vou directamente para Mayreau, e se houver tempo (não vai haver) paramos em Canouan à volta. Na quarta-feira temos de estar aqui para tirar os pontos ao Bernie e subir para o Marin com o vento que tem estado vai ser uma tourada.

II

E assim é: mais um dia neste porto do qual um poeta local diz

...Bequia on the world
chart provides a wide deep harbour, not small
or obscure, a trade wind port-of-call
for sailors from around the world

of all persuasions: on the lam
or on the loose, wealthy or poor,
of every creed, language or colour.
I know them. I am one of them
...

III

Há pouco chegou um gajo que se pôs na bóia ao lado de mim; vi que ele pediu ao barco do pão - há um centro comercial flutuante em Bequia, tenho de contar isto - que o levasse a terra e claro que o homem parou no JINGLE quando o chamei.

O tipo - um branco dos seus vinte e muitos trinta e poucos - estava com uma cara de chateado de fazer dó e mandei-lhe uma piada, tipo "vais fazer a volta do padeiro". "Pois, e eu que pensava que ia para a terra", respondeu de mau-humor; a conversa continuou assim até que ele me disse "vou mas é trabalhar como boat boy aqui em Bequia, estes gajos fazem mais dinheiro do que eu". Estava realmente zangado, o rapaz, e ainda mais o ficou quando eu retorqui "good for them". Há provavelmente milhões de brancos a ganharem milhões de dólares mais do que ele, mas que um preto ganhe a sua vida isso é que não.

Isto dito é verdade que Bequia é caro, ultrajosamente caro, e dar quase três euros por uma coisa a que, só por ser feita de farinha (e é do tamanho de um papo-seco) eles chamam pão dói.

Mas as coisas são o que são, chove desalmadamente e o pão - e o tomate e o manjericão e tudo, com a santa excepção do rum - é caro. Consequências sem dúvida do aquecimento global, que tem provocado uma das épocas mais frias dos últimos anos e do mercado, isto anda tudo ligado.

O centro comercial flutuante em Bequia é composto por uma série de botes, o mais das vezes mas nem sempre a motor, que nos trazem pão, fruta, gasóleo, água, gelo, lavandaria, colares e produtos artesanais, peixe, lagosta e levam o lixo (1,30 euros por saco).

I know them. I am one of them.

Belém, Pará, Brasil, 11-05-2012

Há três coisas que gosto de fazer: navegar e cozinhar (e escrever e fotografar, e andar de bicicleta e passear a pé e ler e ouvir música e ir ao cinema... estas listas nunca ficam completas). Hoje cozinhei, pela primeira vez em muitos meses. Enfim, cozinhar é um exagero grosseiro: fritei um chouriço - mau - mexi uns ovos aos quais acrescentei duas malaguetas, cortei um pepino em rodelas (e ainda assei um pimento para logo à noite). Foi tão bom que até lavar a loiça deu gozo, e tive de me conter para não lavar tudo outra vez. Há não sei quantos meses que não me aproximo sequer de um fogão.

Um hostel, que antigamente se designava por albergue de juventude é basicamente uma pousada muito barata, com menos serviços ainda do que uma pousada barata mas com três coisas a mais: limpeza, cozinha e hóspedes simpáticos. Esta nem papel na casa de banho tem - cada um que traga o seu, se quiser. Mas é barata, está bem situada, o Heloísio (o dono) é uma simpatia e os lençóis estão limpos. Pouco mais há a pedir de um sítio onde se vai dormir três noites.

Desta vez não há professoras universitárias de alterações climáticas, coisa que me deixa cheio de pena.

Quando acordar da sesta terei estado em Belém vinte e quatro horas. Há pessoas que se queixam de que o tempo passa depressa de mais...

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Ao fim do dia o mercado Ver-o-peso fecha e as pessoas deslocam-se para as esplanadas que dão direcatmente para o rio. Há tanta gente de um lado e tão pouca do outro que pensei que aquilo ia virar-se e despejar os clientes para o rio. Não virou, claro; e consegui ficar ali um bom bocado, a ver o pôr do sol, as pessoas a conversar e a comentar o dia que se prepara para acabar, as centenas de bancas desertas, quase todas elas.

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Reencontro, meio por sorte meio por orientação, um bar onde me lembrava de haver jazz. Há, mas só às quintas-feiras. O bar é giro (chama-se Cosanostra e fica na Travessa Benjamin Constant 1499, se por acaso) mas desconcertante. Tem uma atmosfera de bar, uma decoração de café e um barulho de cervejaria à hora de ponta. Lembro-me que já da outra vez fui no dia errado; apesar disso fiquei contente. Pareceu-me um sítio normal. No caminho de regresso vi dois miúdos de roller skate  na rua e aí sim, tive a confirmação.

Vista de longe São Luís aparece-me como aquilo que me perguntava se era vista de perto: uma cidade balofa e vazia, mal-cheirosa e pedante.

Enfim, exagero um pouco: era pedante, sem dúvida; e mal-cheirosa. Mas tinha o seu interesse. Na verdade isto ocorreu-me muito antes do Cosanostra. Num dos cantos do jardim estava uma banda a tocar. Seria talvez o equivalente local da banda que todas as noites empesta a rua da Tia Dica e do Raimundo (mas paga por eles os dois).  As principais diferenças eram:

  • O local é mais bonito e não cheira mal;
  • A música é melhor;
  • O público muito mais interessante (não havia bêbedos, pedintes, putas, travestis, crackados nem o resto da fauna habitual do Reviver);

Claro que o facto de Belém ter mais gente explica muita coisa; mas não explica tudo.

Fui a uma loja de jornais e o senhor sabia o que era o Economist; infelizmente tinha-os vendido todos. A continuar assim ainda vou encontrar atacadores para os sapatos.

quinta-feira, 10 de maio de 2012

Belém, Pará, Brasil, 10-05-2012

Belém, finalmente. A cidade é maior, mais bonita e mais limpa (o que não significa que seja limpa - é menos suja) do que São Luís, e infinitamente mais interessante. Vim para o hostel onde fiquei quando por cá passei em 2010. O homem reconheceu-me, o que me parece surpreendente.

Hoje já fui dar um passeio, tirar-me de São Luís, ou tirá-la de mim. A saída foi digna dos meus tempos aúreos das viagens de avião. Uma vez telefonei para um check in a pedir-lhes para não fecharem, que estava quase a chegar. Não estava: ia no metro a caminho de Heathrow. Prometo que a senhora não se mostrou surpreendida; não devo ter sido o primeiro a fazê-lo. Tambem não me lembro de reacções especiais nos meus vizinhos. Se calhar eram ingleses, como a hospedeira com quem falei. E sim, o check in estava aberto.

Hoje de manhã foi assim, excepto que teria sido impossível ligar para o balcão, claro. em Londres telefonei para as infomações, pedi o número do aeroporto e ecco.  Aqui só teria falado com as informações depois de o avião aterrar em Belém. Saí da pousada uma hora e cinco minutos antes da descolagem, ou seja cinco minutos antes da hora à qual devia chegar ao aeroporto. O trajecto dura vinte minutos, aproximadamente, portanto nessa altura ainda não estava muito ansioso.

Mas o trânsito em São Luís estava pior do que o costume; a caminho do aeroporto houve um acidente... Enfim, passo os pormenores: a verdade é que consegui embarcar. Cheguei ao balcão quando a senhora se preparava para o fechar. Pouco mais de uma hora depois estava em Belém e, para minha grande surpresa, a bagagem também.

De maneira só precisei de tirar de mim a ansiedade de hoje e o mês e pouco que ficou para trás. Foi fácil. Perto do hostel há um jardim grande e bonito, clássico (e que à noite se transforma no ponto de encontro de muitos jovens e afectuosos senhores, mas passons); percorri-lhe as alamedas, largas, claras; e em menos de um quarto de hora estava em Belém, finalmente.

Faltam dois dias e meio para me ir embora. Vou andar muito, de novo. Lembro-me bem dos passeios que por aqui dei, sempre bonitos, fascinantes, intrigantes. Nunca tinha visto ruas arborizadas com mangueiras, por exemplo. Lembro-me do mercado de Ver-o-peso, perto do qual assisti a uma repugnante cena de abutres (ou outra qualquer espécie necrófaga) a disputar uma quantidade enorme de peixe morto; dos restos de um antigo porto transformado em vasto espaço de lazer e onde um simpatiquíssimo senhor faz um delicioso chocolate artesanal.

Belém é a cidade mais importante da foz do Amazonas e tem-se nela a permanente sensação de que estamos a ver pouco mais do que uma porta entreaberta. Por trás - e para trás - de tudo o que se vê há - e houve - coisas de cuja existência só se vêem breves e fugazes sinais. Descobri-las, decifrá-las, seria tarefa para muito mais do que três dias; o melhor é mergulhar no mistério e nele nadar sem grandes preocupações, se não a de manter os olhos abertos e percorrê-lo o mais possível.

No hostel havia duas alemãs, jovens, que davam aulas numa universidade local. Eram professoras de alterações climáticas. Até as encontrar eu pensava que na universidade havia aulas sobre clima, e nessas aulas se estudavam as respectivas alterações; mas não. São um objecto de estudo de per se. Disse-lhes que era um bocadinho céptico a respeito das alterações - ou, melhor, das suas causas. Uma delas era alta, magra e bonita; a outra parecia o resultado de um cruzamento entre um camionista e um bulldog. Um dia convidei a mais bonita para jantar; olhou-me desconfiada, mas eu garanti-lhe que o objectivo era conversar um bocado e passar um bom momento, nada mais. Fomos a um sítio muito giro, perto daqui, chamado Babette (não tenho uma boa memória: vi o nome há pouco). Acedeu; a outra não rosnou, pelo menos em público.

Defendiam as duas que a maioria das pessoas é céptica em relação às alterações climáticas; viam o trabalho delas como uma cruzada (um bocadinho dificultada pelo facto de estarem fartas do Brasil e dos brasileiros até à medula, mas isso é outra história). Fiquei surpreendido; disse-lhes que não era essa a ideia que eu tinha: "se perguntarmos a cem pessoas na rua, aposto que noventa e cinco acham que o clima está a mudar, e que os homens são os culpados". "Nada disso, etc." (passo os pormenores, são de todos conhecidos). A baixa era a mais agressiva das duas. Depois do jantar esperou-nos na sala; devolvi-lhe a simpática amiga e fui deitar-me. Pouco mais falámos, até eu me ir embora.

A próxima etapa é Pointe-à-Pitre, na Guadeloupe, uma cidade que não conheço; vai ser bom rever V. e R., se tiver oportunidade disso. Foram eles que nos rebocaram, à Lena e a mim, quando trazíamos o A. de Grenada para Antigua e se partiu um vau (os dois vaus estavam partidos, mas eu não sabia. O dono do barco não achou necessário dizer-mo). Passámos quatro horas no dinghy a rebocar o barco até que a SNSM chegou. R., o skipper fez a mais bonita manobra de atracação que jamais me foi dado ver, comigo de braço dado e trinta centímetros entre nós e as embarcações atracadas aos pontões da marina.

Um regresso que se vai fazendo saltando de memória em memória, a caminho de um futuro do qual se vê uma frincha, uma pequeníssima frincha. Que interessa? O futuro é um buraco negro, vamos lá parar quer queiramos quer não.

Bequia, Grenadines, 24-02-2011


Comecei a escrever estas linhas nos Deux Pitons; continuo e acabo em Bequia (pronuncia-se Bekway, nunca é demais lembrá-lo).

Se eu tivesse o pior emprego do mundo seria fácil descrever os cinco últimos dias. Infelizmente (enfim, “infelizmente” deste ponto de vista) não tenho; tenho o melhor emprego do mundo. E assim é muito difícil descrever tudo.

O grupo chegou sorridente, amável, afável. “Conhecem-se todos bem”, pensei. “Não é a primeira vez que navegam juntos”. Feitas as apresentações, escolhidos os camarotes (à sorte, os três que restavam: eu já tinha escolhido o meu, do lado estibordo porque as tradições são para se respeitar), depositadas as bagagens fomos jantar – ao Mango, claro. Não é o melhor restaurante do Marin, mas é a melhor forma de colocar as pessoas “no banho”, como dizem os franceses, tão bem.

Ficou combinado que decidiríamos os pormenores da viagem no dia seguinte, pelo que ao jantar se falou de tudo e mais alguma coisa menos de percursos, trajectos, datas e quejandos. Dos seis, só um fala inglês razoavelmente; três falam assim assim a cair para o muito pouco; e dois não falam de todo. Mas o bom humor continuou. Eu esperava um bando soturno, cansado da viagem, desconfiado; fiquei servido: saíu-me o contrário.

No dia seguinte tive a surpresa da minha vida: um grupo de alemães que me diz, depois do meu discurso sobre as ilhas e o esquema de viagem e não sei que mais “escolhemos o primeiro destino da viagem. Os seguintes, vamos escolhendo onde estivermos”; não é só que isto não corresponde à imagem que todos temos dos alemães - é que não corresponde de todo à minha experiência daquele povo.

Domingo foi também dia de compras e à noite fiz-lhes um Colombo um bocado improvisado. Tive sorte (e eles também): foi o melhor Colombo que fiz até hoje, apesar da improvisação. Ou talvez por causa dela: em vez de colombo usei caril... (e acertei finalmente na quantidade de açúcar, mas isso são contas de outro rosário).

Dupla sorte: durante o briefing o dono da empresa disse-me que não tinha que me preocupar com a solidez do barco, porque realmente os primeiros modelos saíram um “bocadinho fracos”, mas forma modificados depois; e o JINGLE, apesar de ser dos primeiros modelos, foi modificado também. Boa notícia: não tenho de andar rizado desde que o tipo dos ventos arrota com um bocadinho mais de força.

E segunda-feira largámos, como previsto, rumo aos Deux Pitons, em Sta. Lucia. É onde escrevi estas linhas. É aqui que se torna difícil explicar que tenho o melhor emprego do mundo. Mas enfim: difícil não é impossível, e nada impede de tentar, quanto mais não seja. Começo pelo ambiente a bordo, porque ou eu me engano muito ou vai ficar assim até ao fim. São três casais que se conhecem há muito tempo, e já fizeram cruzeiros destes no Mediterrâneo e no Báltico. A forma de comunicação mais frequente é o riso – sobretudo quando uma das senhoras fala. Cada vez que abre a boca todos se desmontam a rir. Infelizmente é uma das que não fala inglês de todo, e os outros estão demasiado ocupados a rir para traduzirem o que quer que seja. São todos de uma simpatia inexcedível; integraram-me como se eu tivesse estado nos cuzeiros todos que fizeram. Está tudo dito.

Não, não está: um deles é mixer de cocktails, ainda não percebi se amador se profissional. Agora sim, está tudo dito.

Saímos às nove da manhã, ou nove e meia, como previsto; força 4 pela alheta. O barco não anda, ponto final parágrafo. Os cascos têm barbas de velho muçulmano, e quando chegamos aos 8 nós – enfim, não chegamos. Ficamos-nos pelos sete, e às vezes 7 e meio. No que diz respeito a velocidade estamos conversados. Eles ainda não sabem, mas nas Tobago Cays espera-os uma sessão de esfreganço de cascos - pelo menos espero.

Chegámos aos Deux Pitons depois de rasarmos a baía anterior (Soufrière) para escolhermos onde fundear. Foi unânime: Deux Pitons. Deux Pitons para sempre.

Os montes, montanhas ou o que for que  dá o nome à baía são duas formações rochosas de origem vulcânica, uma com 777 e outra com 743 metros de altitude que caem directa, verticalmente no mar. Vistos de longe, os Deux Pitons são uma experiência estética; de perto - de debaixo deles - são uma experiência metafísica, existencial, religiosa, telúrica, mística. A baía é profunda - estamos a 100 metros da praia e tenho 60 metros de fundo - pelo que a água do mar é azul de alto mar. Combinado com o verde que nos rodeia - só não há vegetação em alguns bocados mais rochosos e absolutamente verticais das montanhas - tenho a sensação de estar no meio das forças todas da terra: o mar, as montanhas, a vegetação, o vento.

Um amigo tinha-me dado, ainda no Marin, o contacto de um tipo local que faz refeições e organiza passeios pela ilha. Encomendámos-lhe um jantar e um passeio. 60 euros por pessoa (a multiplicar por seis. O skipper não paga). O jantar dava aproximadamente para uma tribo de 50 pessoas em jejum há dois meses: frango, peixe (bonito), arroz, legumes locais, massa, salada – tudo isto em quantidade para dez pessoas, cada uma das coisas por si. Acompanhado por vinho tinto, branco, precedido por uma série de cocktails e sucedido por um rum seco; mais uma faceta da natureza  a juntar-se às outras todas.

Raramente vou nos passeios a terra; a terra chateia-me, não a compreendo e acabo sempre por me aborrecer. Foi o que aconteceu neste: o jardim botânico era lindo e de uma riqueza fantástica, mas as quedas de água banais e o vulcão não acrescenta nada a quem esteve três anos nos Açores. Contudo a tripulação adorou. De cinco em cinco minutos ouvia "Wunderbar. Es ist schön, schön. What a fantastik tay, what a fantastik tay".

Dia que acabou comigo a tomar banho nos tanques das quedas de água, a olhar para o Petit Piton e a pensar que tenho o melhor emprego do mundo, finalmente.

Na viagem para Bequia, Bernie - o homem dos cocktails - escorregou e fez uma ferida na cabeça. Pelo que fiquei a conhecer também o hospital da ilha (Bequia é uma ilha com 18 km2. A "cidade" chama-se Port Elizabeth). Fomos atendidos mal chegámos por uma médica que estava sentada à porta e fez um trabalho que à primeira vista me parece soberbo. Vamos ver como cicatriza. O acidente ocorreu quando nos preparávamos para rizar. Esperei um monte de recriminações, mas só ouvi elogios - a verdade é que ele escorregou, e contra isso não posso fazer nada. Limitei-me a pôr um bocadinho de ordem na confusão que se seguiu, e pouco mais. Os primeiros tratamentos foram feitos pela mulher - a senhora que desmonta os outros à força de gargalhadas - que não o largava. Tudo o que tive de fazer foi tentar chegar o mais depressa possível a Bequia - e chegámos aos oito nós.

O que me fascinou no hospital - uma construção térrea mais pequena do que muitas casas de férias que conheço - não foi apenas a beleza ou a eficácia da médica (talvez devesse usar a ordem inversa...). Quando quis saber quanto custava o tratamento a senhora disse-me que não cobravam dinheiro, mas aceitavam donativos. Perguntei-lhe do que necessitavam mas as explicações foram demasiado vagas. Pelo que hoje na farmácia, depois de uma consulta à "Finanz Direktor" sobre o valor da donação (acordámos 50 euros, nos quais eu também participei)  perguntei à farmacêutica qual a sua opinião sobre as necessidades do hospital - e ela fez o mais racional: telefonou à médica. Levámos os remédios e voltamos ao hospital daqui a uma semana, para tirar os pontos. Felizmente a data calha bem com o cruzeiro - três antes do fim do charter.

Não me canso de Bequia. Hoje descobri que não sou o único: há inúmeros marinheiros que decidem vir para aqui quando acabam a vida de mar, ou pelo menos a vida de viagens. Ou seja: um tipo cansa-se de tudo, e descansa em Bequia.

Escrevo do primeiro andar do hotel onde há sete anos vinha para a net. Chama-se Gingerbread. À minha frente, metade da área da janela é ocupada por uma copa de palmeira. A outra metade, em partes muito desiguais, pela água, pela montanha e pelo céu. Está calor, mas o vento, o bendito vento refresca tudo. Gosto de Bequia. Nunca me cansarei do que faço, mas quando me cansar de tudo o que não fiz virei para aqui, descansar.

quarta-feira, 9 de maio de 2012

Le Marin, Martinique, 19-02-2011

Os antecedentes dos Diários de Bordos são um série de posts que escrevi no Don Vivo com o título de Livro de Bordos. Tinha há algum tempo a intenção de os passar para aqui. Começo agora, mantendo a ordem.

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Hoje começa o meu primeiro charter. Esta longa espera chega ao fim. Foi longa e apetece dizer "chega ao fim, finalmente". Os clientes - três casais de alemães de idades entre os 45 e os 65 anos - vão chegar às seis e meia da tarde. Às duas vou receber o barco, e um briefing.

Já houve uma breve troca de mails com os clientes. Querem ir para as Grenadines e depois Grenada - é a chapa 5 dos cruzeiros do sul das Caraíbas. Hoje apercebi-me de que foi há sete anos, mais mês menos mês, que fiz a mesma coisa, com o meu amigo Júlio Quirino, grande arquitecto e criador de cães d'água portugueses, e uma tripulação fantástica. Espero que este charter se passe tão bem como aquele.

A embarcação é um Orana 44. Chama-se "JINGLE". Até hoje não encontrei uma única pessoa que me tenha dito bem deste modelo da Fontaine Pajot. A regra vai ser, portanto, não puxar pelo bote. Não há nada mais aborrecido durante um charter do que ter uma avaria grave, das que obrigam a escalas mais longas do que o previsto ou a despesas inesperadas.

Hoje ao jantar far-se-ão as apresentações, definir-se-ão vontades e ideias de percursos. Amanhã vai ser dedicado às compras, e segunda-feira largamos. "Segunda-feira largamos": é difícil transmitir o prazer profundo que estas três palavras suscitam.

É o que vou tentar fazer com esta série de posts, sobre este e outro charter que farei antes de ir para o Brasil. O próximo vai ser completamente diferente - será como trabalhar no McDonalds da vela. Uma empresa que faz charter à cabine a preços abaixo da linha de água, e que é rentável porque a) os salários são baixos (muito baixos) e b) os barcos têm taxas de ocupação dementes.

É contudo uma experiência que me interessa bastante; por um lado pelo desafio em termos de relações humanas - 10 passageiros (e quase sempre franceses, qui plus est) num monocasco de 50 pés durante uma semana exigem prodígios de psicologia aplicada - e por outro pela operação em si. Assisti ao nascimento da Switch e participei com gusto em todos os debates sobre a viabilidade ou não viabilidade da empresa. Sempre defendi que ia vingar, e vingou. Agora vou ver por dentro o mecanismo. Ontem falei com um amigo daqui que trabalhou dois anos e meio como responsável pela manutenção. Contou-me que chegaram a mudar motores num dia.

Não é o tipo de charter que me interessa, claro - mas creio que é uma experiência importante. Um pouco atrasado, mas aquilo que me fez vir para as Caraíbas realiza-se. Graças à eficácia e à preocupação de um funcionário público francês, para quem eu "poder exercer a [minha] profissão" foi um motivo suficientemente importante para me dar uma equivalência em dois dias úteis.

Segunda-feira largamos.

São Luís, Maranhão, Brasil, 09-05-2012

É a minha última noite em São Luís, ou penúltima quando muito. Dei por mim a pensar que fui injusto com a cidade. É-se sempre injusto com aquilo de que não se gosta - sobretudo quando não se gosta porque se foi injusto, mas isso são considerações a posteriori. Paciência. As coisas são o que são, e uma coisa que elas não são é justas. Soirée de quarta-feira na AVEN - hoje com pouca gente e com uma carne do sol absolutamente sublime, a melhor que comi desde que cheguei ao Brasil, em 1500; juntaram-se a nós três uruguaios, que estão a levar um motor-sailor Swan (menciono a marca porque juro que não sabia que a Swan tinha feito motor-sailors e muito menos há 30 anos). O skipper vive na Florida, tem uma empresa de moldes em carbono. Vão para Punta del Este com aquele enorme chaço - ninguém imagina o choque que é, a surpresa, o espanto poder (e dever) chamar chaço a um Swan -.

Fui jantar à tia Dica. Ando há não sei quanto tempo a pedir-lhe que me faça uma picanha só para mim, mas ela iniste que a dose é para duas pessoas. Hoje consegui demovê-la. A picanha estava excelente, a caipirinha melhor do que nunca. Até a música na rua estava boa; pelo menos pareceu-me. A tal ponto que daqui a pouco voltaria para lá, se não estivesse com tanto sono.

Assim vão os dias, e as noites. Fiz aquilo que devia fazer, apesar de nem sempre nas melhores circunstâncias. Talvez volte, um dia; talvez não. Pouco me interessa, na verdade; hoje corrigi uma injustiça e confirmei outra: o que é é o que somos; "o mundo é mais pequeno do que o viajante que nele viaja", como diz James Baldwin ("Voyagers discover that the world can never be larger than the person that is in the world"). Ainda bem. Que seria um mundo sem injustiças, que seríamos se não pudéssemos corrigir algumas delas?

Em breve estarei em St. Martin. Suponho que agora esteja mais silenciosa, com a época dar os últimos suspiros. Gostava de ir para o México, mas não sei para onde me mandará a vida, essa patroa bela e injusta. 

segunda-feira, 7 de maio de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 07-05-2012

"O país é  vosso, façam dele uma lixeira, se quiserem". Estou num dos sítios mais bonitos de São Luís, encontrado anteontem, se tanto. É uma esplanada à beira-rio que eu pensava estar aberta só à noite, mas não: abre às cinco da tarde. 

A vista é sublime. A baía de São Marcos abre-se ao pôr-do-sol como uma flor cor-de-laranja, cortada por uma vela ou duas, uma canoa, uma biana. O continente (São Luís é uma ilha) não está muito longe, mas quase não se vê, porque é baixo e por causa da evaporação. A esplanada esta rodeada por um relvado, apinhado de lixo: copos vazios, garrafas, guardanapos. Pedir à senhora para me deitar fora um minúsculo saquinho de plástico transparente parece-lhe um absurdo.

É. "Mas é feio, isso tudo cheio de lixo". Ela encolhe os ombros. "O país é vosso..." Ela leva o saco para dentro.

O Nordeste brasileiro é uma imensa lixeira, insuportavelmente ruidosa, nalguns dos locais mais belos do mundo. É uma permanente contradição. Talvez afinal eu não seja tão esquizofrénico como pensava: para gostar disto há que ter uma personalidade dividida em dois, uma das quais totalmente cega, surda e sem olfacto.

Estava para me ir embora amanhã, mas já não vou. Fico mais uns dias. Pessoalmente acho indecente, mas fui eu que aceitei, ou quis, não sei. Acho-me indecente, é o que é. Quero ir-me embora, quero ir ter contigo, quero um trabalho como deve ser, quero navegar, quero que a minha vida se transforme, de repente, num largo rio tranquilo. Dir-me-ás que não faço nada por isso e terás razão; mas também não fiz nada para que fosse este curso de água turbulento, agitado, irrequieto que é. Há pessoas que definem vidas, e vidas que definem pessoas; ainda não sei - é grave, aos cinquenta e quatro anos - em qual dessas categorias estou.

Já me despedi da Rosa; vou ter de voltar atrás. A única coisa que detesto mais do que reencontrar alguém de quem já me despedi é reentrar no porto que acabo de deixar. Foi a única pessoa de quem me despedi, verdade seja dita. É ela que me dá de beber quando acordo da sesta e vou acompanhar uma cerveja com três reais de castanha salgada. É uma tarefa nobre, bonita, apesar das pilhas de cadeiras de plástico, apesar das mesas de plástico, da música de plástico. A Tia Amélia (mãe da Rosa) e a esplanada cujo nome desconheço à beira rio são os meus locais, agora. E continuarão a ser.

Gosta da razão que me faz cá ficar: é uma tarefa de sedução. Talvez tenhas razão. Talvez não: preciso de seduzir a vida, todos os dias, mais do que pessoas. Mesmo sabendo que a vida é feita de e por pessoas. Não são elas que puxam por mim; é ela. Seduzir a vida é uma vida em si; deixar-se seduzir por ela outra. Gosto das duas.

domingo, 6 de maio de 2012

Marigot, Saint Martin, 06-05-2012

O armador saiu e vinte minutos depois já estávamos no jacuzzi, fazendo de conta que o barco era nosso. Decidi que só vou fazer mais uma saída com ele, depois demito-me. Uma das razões para a minha demissão é a necessidade absoluta de tentar, pelo menos, cumprir o objectivo que me trouxe até aqui (que não era trabalhar num mega-iate); outra, ou talvez a mesma, é algo de que já falei: desta vez estavam dez hóspedes a bordo, da próxima estarão doze. «Não foi p'ra isto que eu vim cá» e preciso de mudar de isto, porque isto é de mais para mim. As pessoas devem saber reconhecer os seus limites; eu passei dos meus demasiadas vezes e acho fundamentalmente desonesto fazer algo de que não gosto -- e aborrecido fazê-lo outra vez.

21h, Paradise Plaza Casino. Cheap-Date-Tati (porque segundo o capitão bebo dois copos de vinho e fico arrumada), S., J. e Mat, um taxista improvisado haitiano que se ofereceu para nos levar ao casino no seu carro e a quem pagámos 60 dólares, ida e volta (mais barato do que teria sido num táxi, 18 dólares a cada um só para a ida). Nunca tinha ido jogar a um casino e pedi aos rapazes que fôssemos. Concordaram porque a época está no fim: já quase não há barcos em St. Martin e os bares que acolhem os yachties (os da música-pastilha-elástica, rum punch da treta e engate fácil) estão fechados. Mas resmungaram o tempo todo.

Consegui a proeza de sair do Casino com o mesmo dinheiro com que entrei, apesar de ter jogado bastante. Saímos com S., que tinha perdido 40 dólares, a acusar-me de ser viciada; e com bastante vontade de ficar -- não é vício: as bebidas são grátis para quase todos, as empregadas não discriminam os clientes que, como nós, se sentam nas máquinas cuja aposta mínima é um cêntimo de dólar. Enquanto jogava, conheci um local que me contou que os seus compatriotas vão muito a casinos (há dezenas na ilha), estoirar o dinheiro do salário, porque a vida na ilha é aborrecida e não há muito que fazer. Eu digo que vão porque os casinos estão ali. Se não existissem, as pessoas arranjavam outras coisas com as quais se desaborrecer.

No bar, cheio de gente a assistir a um combate de boxe pela tv, passava-se uma cena que, embora eu classifique de indescritível, é boa de mais para que não a tente descrever: um jogo de dominó violento. Sim, o jogo que os velhotes de todo o mundo jogam pacificamente ao fim da tarde, à sombra de uma árvore num jardim público, disputado por quatro matulões zangados a uma rapidez alucinante, que batiam violentamente com as peças na mesa de cada vez que as jogavam. Devo ter ficado dez minutos com cara de parva a olhar para a situação, e quando os rapazes me chamaram para sair o tipo mais bruto de todos tinha acabado de bater com uma peça na mesa e dado um soco no ombro do jogador do lado, dizendo-lhe alguma coisa agressiva, que não compreendi. Não consegui evitar e dei uma gargalhada. E continuei a rir enquanto saía, sem conseguir deixar de olhar para eles. Subitamente sereno, o brutamontes-mor olhou para mim com um sorriso e perguntou «do you like this?».

«Yes, very much!»

quinta-feira, 3 de maio de 2012

São Luís, Maranhão, Brasil, 03-05-2012

Voltei ao Odeon. O espaço é giro, mas só por crueldade ou masoquismo se pode pensar no Pavilhão Chinês quando se lá entra. Em São Luís oscilo entre uma e outra, permanentemente. Deve ser isso que me cansa.

Que ao fim de um mês eu esteja a descobrir coisas no Reviver diz mais sobre mim do que sobre o Reviver; ou sobre mim no Reviver. Salvo raras excepções as descobertas são cruéis, e sem excepções masoquistas. Pouco me importa, na verdade. Fechei a loja. São Luís já está na fábrica de recordações, e de nunca lá sairá, provavelmente.

Já alguém em Parnaíba me tinha dito - lembro-me como se fosse hoje, mas não me lembro de quem foi - que no Maranhão as coisas andam devagar. "Não penses que por ires para uma cidade maior do que Parnaíba vais para a Europa" - talvez não tenha sido assim dito, mas foi esta a ideia -. Europa? Quem é que falou de Europa?

Mais valia falarem do planeta Marte, ou Saturno.

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Ontem apanhei-me a invejar os turistas. É tão bom, visitar um lugar qualquer. Resumir a interacção com os locais a "traga-me uma caipirinha, por favor"; ou "não falhe, olhe que o avião é às tantas".

Também descobri que sou velo-dependente, mas preciso de mais tempo para elaborar. Por agora, só uma decisão: qualquer estadia superior a três semanas vence bicicleta, seja ela qual for.

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Resumindo: qualquer dia vou-me embora. E depois desse dia serei capaz de escrever sobre São Luís, Parnaíba e outros locais infelizes.


Rendezvous Bay, Anguilla, 03-05-2012


Nada no mundo me é indiferente e, no entanto, ei-lo indiferente ao meu cansaço, à minha insatisfação. Lembro-me insistentemente de uma canção de Jorge Palma com o verso "não foi p'ra isto que eu vim cá". Anguilla, tão bonita, quase não se vê. O nevoeiro, de pé há vários dias, é palpável como a solidão de quem vive esta vida, tenha ou não tenha escolhido. Penso no protagonista de Lobo do Mar, de Jack London, tripulante por acidente (náufrago, primeiro) numa embarcação de capitão implacável, super-homem, e em como me faltam força e inteligência para aceitar as circunstâncias. Não saí, ainda, da infância e da tirania caprichosa de uma certa ideia de justiça que a vida se encarrega de desfazer. Afinal, o mundo não é como devia ser, nem as coisas são como deviam, nem como me convém que sejam, nem como, nem mais nem menos, nem pouco mais ou menos, nem nada que se pareça com. O passo seguinte é aceitar que as coisas são como são (onde é que já ouvi isto?), por mais estúpido que seja admitir que ainda não as aceitei como são, nem tão-pouco a mim como sou. Mas não fará parte do processo de crescimento de todos e de cada um o dia em que encolhemos os ombros e decidimos que tentar lutar contra a ordem natural das coisas é uma empreitada grande de mais para nos darmos sequer ao trabalho de tentar? E como se combate o medo de não saber distinguir as coisas pelas quais vale a pena lutar das outras, dos Lobo Larsens deste mundo que um deus ex-machina se há-de encarregar de liquidar?

Afinal, não é questão de inteligência, que não me falta -- tenho que baste para saber que estou exausta de pensar que as coisas estão a ser como são e não como eu quero. É de me faltar tudo o resto: vontade, paciência, presença de espírito. Maturidade.

Duas engenhocas e um panamá, que me fez mais feliz do que as engenhocas. Andei sorridente durante meia hora pelas ruas de Marigot, envergando na cabeça a parte certa do motivo da minha vinda às Caraíbas: sol, mar, amor, alegria. Era de noite e chuviscava. Nunca acabo o trabalho a horas de ver o Sol e de cortar o cabelo, pelo que até conseguir cortá-lo estou determinada a escondê-lo debaixo de um magnífico Homero Ortega número 56, fabricado em Cuenca, no Equador.

A taxista Marie, dominicana, que me trouxe de Philipsburg no sábado quando lá fui comprar os aparelhos -- o pretexto era ir à farmácia, mas nenhuma tinha o que eu queria, daí que comprei outras drogas --, não é muito simpática, mas é eficiente e educada. Disse-lhe que estava com uma certa pressa, mas compreendi que não podia fazer nada: era feriado de Carnaval e às nove da manhã as ruas estavam pejadas de locais a dançar, já bebidos, e carros alegóricos manhosos patrocinados por marcas de cerveja e operadoras móveis. Marie escolheu um atalho, uma rua estreita, sem trânsito e com carros estacionados de ambos os lados (nisto a cidade faz lembrar Lisboa, só que em melhor, mesmo assim), mas a meio do caminho havia um carro parado no meio da estrada. Um local (preto, sim, mas Marie também) de uns 18 anos estava do lado de fora, a falar com o condutor, e olhou de soslaio para o táxi, transpirando agressividade, sem mostrar a mínima intenção de se despachar. Marie explicou-me que o rapaz estava à espera de que ela lhe dissesse alguma coisa, mas não se atreveu: «pode ver pela linguagem corporal dele, pela maneira como se veste, que não se deve meter com esta gente. Desta vez se calhar não faz nada, mas da próxima que vir o carro vem com os amigos e partem-mo todo com bastões. Já me aconteceu.» Contei-lhe que fui roubada na ilha, disse-lhe onde. Soltou uma gargalhada: «nessa zona não só não se pode deixar nada no carro -- nem sequer no porta-bagagens -- como o melhor a fazer é deixá-lo sempre destrancado; eles forçam a fechadura tenha ou não tenha coisas à vista, por isso é melhor que fique aberto». A informação chegou com três semanas, trezentos dólares e algumas dores de cabeça de atraso, mas foi bem vinda.

Para lá tinha ido de minibus, por dois dólares, a ouvir conversas em espanhol indecifrável e inglês tropical, a passar troco e pagamento de mão em mão, a sentir-me de novo em casa, como me sentia nos autocarros de Antígua, cujos percursos conhecia de trás para a frente e cujas viagens eram um dos pontos altos do meu dia; para Marigot voltei por 18 dólares, sã e salva, a tempo de dar os retoques finais no meu trabalho, antes de aparecer o armador.

Esta estadia é curta, de sábado a sábado, mas muito mais penosa para mim do que a anterior, como a próxima será mais do que esta, e assim sucessivamente. Estarmos em Anguilla com este tempo não ajuda, a família está sempre no interior do barco, a escapar à chuva, decerto aborrecida com a sorte que lhe calhou. Mesmo com a ajuda dos rapazes, resmungões incansáveis e eficientes (tirando S., que deverá ter feito uma cama da pior maneira que já vi), percebo que isto não é para mim. Os padrões de exigência são elevadíssimos para que uma pessoa só os cumpra sem chegar a um esgotamento, sem chegar a odiar o seu trabalho, sem uma lavandaria com mais de um metro quadrado para poder dobrar toalhas de banho sem as arrastar no chão. O dinheiro não é tudo. Não é nada, aliás.

Preciso de trabalhar num barco onde, quando fundeado, possa usar o meu panamá. Enquanto navego não: ele é livre e voa.



terça-feira, 1 de maio de 2012

São Luis, Maranhão, Brasil, 01-05-2012

Querido diário,

Hoje passei a manhã a defender o direito dos capitalistas e do grande capital de explorar as classes operárias, trabalhadoras, laboriosas e unidas baixando-lhes o preço das compras para metade. Foi extenuante, como podes imaginar; por isso depois do almoço fui dormir uma longa e reparadora sesta.

Quando acordei quis ir ao mercado da Praia Grande comprar três reais de caju e beber uma cerveja; mas o mercado - cedendo sem dúvida à pressão das massas populares (a qual se manifestou pela total ausência de populares) - estava fechado. Com a proverbial e conhecidíssima e reconhecida capacidade de adaptação que nós, os grandes capitalistas, temos optei por comprar cinco reais de camarão empanado e beber a cerveja na Tia Dica.

Agora espero tranquilo a hora de jantar e da punição das massas furiosas. A opressão que sentiram foi tão, mas tão violenta... empurrões, filas de três horas, os supermercados a ter de fechar mais cedo... uma violência. Aqui no Brasil não houve nada disso. As lojas que quiseram abrir abriram, as outras fecharam; e não houve promoções.

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É pena que os holandeses não tenham ficado com isto. Mas nos finais do século XIX, depois de a termos construído. Ambos os países teriam ganho: nós porque construímos, eles porque teriam preservado.

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O Odeon "Sabor de Arte" é uma versão pobre, indigente, miserável, terceiro-mundista do Pavilhão Chinês. Dizer que é um dos melhores locais (para mim, claro) de São Luís dá uma ideia aproximada do descalabro.

Caipirinha - "Não tá saindo";
Água Tónica - "Não temos";
Copos de vidro - "Não há";
Copos de plástico, mas grandes - "Não"... O olhar desolado do rapaz pedia mais desculpa do que qualquer pedido de desculpa.

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Gosto destas noites quentes, abafadas, opressivas, cheias de promessas que o calor desmente imediatamente: transpiro como se o rum saísse directamente pelos poros, sem passar por mais órgão nenhum.

Algo me diz que amanhã vou ter dores de cabeça [não tenho].

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É chocante pensar no Pavilhão Chinês quando se entra no Odeon. É uma das raras associações de ideias que mereceria prisão.

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Às vezes tento pôr-me na cabeça de um destes jovens e sentir o que sentem quando descobrem a Europa. É um salto quântico.

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Havia um concerto de reggae pela jovem artista local Tânia. No jornal precisava que era uma recriação, e não uma simples interpretação.

Devia ter começado às dez da noite. Começou à meia-noite e meia. O bar estava cheio a abarrotar; as filas para as bebidas foram decerto organizadas pelo Exército da Salvação; as pequenas eram giras e totalmente desinteressantes. Fui comer um espeto de frango no carrinho à frente da discoteca que me envenena as noites de fim-de-semana e vim-me embora.

A recriação não parecia má de todo, de passagem (ou de saída) se diga.