quarta-feira, 24 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 24-10-2012

Pela primeira vez na vida achei uma bebida num bar demasiado grande. É preciso contextualizar, claro: a véspera tinha sido de chuva, aquela que nos Estados Unidos é verde e na Europa é cada vez menos. Abrigámo-nos em tudo quanto é sítio: pintxos no Lizarran, jantar na Taberna do Caracol (um endereço  a reter absolutamente) e - no meu caso, a metade pensante de mim estava cansada - noite no Bluesville. De modo no dia seguinte pedi um meio Ricard (sim, existe) no Antiquari para abrir o apetite, coitado, que estava um bocadinho fechado e a rapariga - uma mexicana muito bonita, suave, discreta - encheu-me um copo gigantesco daquilo. Deu para dois bem puxados, e como a jovem metade não gosta de pastis lá tive eu de me sacrificar, como sempre. 


Mas a verdade é que foi muito, dois Ricard antes de um almoço de depois da chuva.

Há uma relação entre a evolução e a bicicleta, pensei nisso o dia todo. Talvez apareça um dia uma coisa que se adapte melhor às deslocações urbanas do que a bicicleta - um Segway menos ficção científica, uns patins menos escultura viva ou brincadeira aplicada, qualquer coisa -; mas por enquanto a bicicleta parece-me o propósito da estação vertical. Temos duas pernas porque temos duas rodas e dois pedais para as complementar (e isto digo eu e não acredito em teleologias, sejam elas quais forem). É bom andar de bicicleta, quase tão bom quanto navegar.

O mini-restaurante Casa Julio ("Uma casa de comidas moderna", diz o título de um artigo de jornal que está emoldurado numa das paredes) confirmou: é um grande restaurante, no qual, após madura reflexão (retratada na fotografia abaixo) a jovem e pensante metade de mim concordou que a ideia de irmos a Portugal ver o nosso amigo Júlio não era má ideia, antes bem pelo contrário.


E eu lá bebi um copo de vinho tinto, para celebrar (antecipação dos muitos que vamos beber em Évora).


Hoje o passeio vai ser de carro. Também é bom.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

Palma de Mallorca, Baleares, Espanha, 23-10-2012

«Esta cidade de bicicleta é outra coisa.» Tens razão. Gosto de coisas fáceis. Falmouth Harbour, por exemplo: chegar ao trabalho a pé em cinco minutos, chegar ao supermercado a pé em cinco minutos, chegar à praia a pé em cinco minutos, chegar ao bar a pé em cinco minutos, ter o mar no quintal. Palma de bicicleta é tão fácil que consegue fazer crescer a nossa simpatia por ela, coisa muito difícil. 

Mas mais difícil parecia ser conseguir alugar as bicicletas (pesadas, sem mudanças mas adequadas às ciclovias e estradas da cidade, muito planas e sem surpresas): primeiro, pediram-nos fotocópias dos documentos de identificação (o cubículo não tinha fotocopiadora); depois, as fotocópias não serviam, era preciso dois passaportes em vez de um passaporte e uma carta de condução -- eu prefiro deixar o passaporte em casa, não vá perdê-lo, de maneira que tive de ir buscá-lo a casa; à terceira foi de vez, mas demorou eras, porque a senhora não se decidia sobre que bicicletas nos entregar (uma delas, afinal, até tinha o cadeado avariado) e íamos ficando com o troco adiado, porque a senhora não o tinha àquela hora da manhã. Uma hora e meia depois pedalámos a caminho do Club de Mar, para fazer dockwalking (uma prática relativamente humilhante que consiste em ir de barco em barco pedir trabalho) e enfim, esta cidade de bicicleta é outra coisa. O frio outonal da manhã transformou-se rapidamente em calor. A viagem que nos levava quase uma hora a pé e uma eternidade imprevisível se esperássemos pelo autocarro fez-se em 15 minutos. Muitos barcos e conversas depois o desânimo desapareceu quase por completo: encontrámos conhecidos, enviámos CVs e tivemos alguns nãos, que são pelo menos mais certos que muitos talvez.

Fiquei a conhecer, ao almoço, a Casa Júlio onde decidimos, se a vida nos deixar, ir visitar o Júlio a Évora em breve. A comida estava uma delícia e os sorrisos dos empregados também. Não há nada melhor do que um restaurante sem turistas numa cidade turística, tirando, talvez, a casa de alguém que nos espera com a mesa posta.

À tarde, fizemos um passeio de bicicleta até ao Arenal. Uns oito quilómetros apenas, sempre à beira-mar, passando por praias e pueblos, novos de bicicleta, trotineta, cães de trela e velhos de bengala ou cadeira de rodas conversando com quem os cuidava. Os maiorquinos, tenho reparado, tratam bem os seus velhos. Dão-lhes carinho e atenção e, sobretudo, acompanham-nos na rua. Há muitos velhos sozinhos, mas os que estão acompanhados por gente mais nova são incomparavelmente mais do que os sozinhos, geralmente de aspecto mais teso que vulnerável. Gosto de uma terra que cuida dos seus velhos. Tenho saudades dos meus -- das minhas, agora, que os meus já estão, dizem, num lugar melhor.

O pôr-do-Sol na Baía de Palma é inesquecível como todos os outros. Ver algo de singular no mais banal e repetido dos fenómenos é como andar de bicicleta: nunca se desaprende.

sexta-feira, 19 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 19-10-2012

Até que finalmente comecei a ouvir (enfim, a ler) nãos. Fiquei contente: um não é um sim que se enganou na porta; e muitos nãos fazem sim. Mas não há quantidade de nadas que dê qualquer coisa.

A vida em Palma-a-afável continua: procurar um embarque, passear (às vezes confundem-se; outras não), procurar um embarque, ler. Desta vez o dinheiro acabou-se antes de o trabalho chegar, mas como é só uma breve interrupção vamos aguentando com esses grandes pilares de uma alimentação económica que são massas, ovos e pão. Em breve voltaremos às tascas, aos pintxos, cañas, tapas, cava e vinho tinto. É como no mar: de vez em quando temos de rizar pano, pôr de capa e aguentar.

Depois desfazem-se os rizos, iça-se o pano todo e fala-se sobre o que aí vem, não sobre o que passou. E o que aí vem é bom: descobri que já não quero voltar para as Caraíbas. Quero ir para Antigua, é diferente.

Quero ir passear a English Harbour, beber copos no Mad Moongose, acordar no Reef Gardens






jantar no Rum Baba e (quando o rei faz anos ou as gorjetas forem boas) no Sun Ra. Aos domingos quero ir ouvir-te cantar a Pigeon Beach



comer uma pizza ao Road Runners


brincar com o Lager, um cão que assim de repente é parecidíssimo com um gato


e sobretudo beber uma quantidade infinita de rum no Skullduggery


a olhar para



Isto das raízes é uma treta. Podem plantar-se onde quisermos.

quinta-feira, 18 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 18-10-2012

Uma pessoa volta a casa e só lhe apetece praguejar. O Bob Dylan da Costa de la Pols é insuportável. Começa, invariavelmente, com "Knocking on Heaven's Door" -- pela meneira como canta, não me surpreende nada que não o deixem entrar -- e termina com "Baby Can I Hold You Tonight", uma profanação violentíssima do original de Tracy Chapman. Só sabe três acordes e aprendeu-os mal. Consegue transformar a belíssima "Angie", dos Stones, numa atrocidade chamada "Angel". A prova de que Deus é injusto é ter posto "o pior músico de Espanha" (nas palavras de N., o nosso senhorio, músico a sério) numa das suas ruas mais bonitas, a nossa Costa de la Pols. Das outras provas não vale a pena falar, todos as conhecemos.

Os dias foram demasiados e demasiado longos para deles falar. O D. é um barco antigo, decente, com espaços amplos e confortáveis, mas a tripulação não se entende. Senti-me atirada a uma trincheira antes mesmo de ter pisado o convés para a entrevista: encontrei num bar de Palma uma jovem conhecida que tinha acabado de sair do D. a mal e me fez ter vontade de não chegar a ser contratada. Quando cheguei percebi que achava cada um dos indivíduos da tripulação uma criatura impecável, mas que entre eles o ambiente era de cortar ao machado. Não foi fácil ser interrompida enquanto polia copos de tinto para me virem falar mal de A ou B, sabendo que eu só iria ficar no máximo dois meses a bordo. Fiquei um. O anúncio era para dois meses, mas fizeram-me um contrato de um com a explicação "se o dono gostar de ti ficas". O tanas, apesar de o dono ter gostado de mim. Cumpri o contrato até ao fim, fiquei a conhecer Valleta e passei uma hora em Paris, onde comi une baguette de camembert avec un verre de rouge. Estou a tentar tornar-me uma mulher sofisticada, já só me falta falar francês, usar maquilhagem, saltos altos e conseguir ter opiniões sobre política internacional. Verve não me falta.

A entrada no porto de Malta ficou-me no coração. A estibordo estava Valleta, árabe e barroca, com uma luz que desafia a de Lisboa com dignidade. A bombordo Birgu, o nosso porto, uma língua de terra amuralhada, com edifícios marcados pela guerra (os ainda destruídos e os recuperados na mesma medida) e uma frente de mar turística, com um casino e vários restaurantes. Em vez do táxi aquático até Valleta (3€ de ida e outros tantos de volta) optei pelo autocarro (2,60€ um bilhete diário e uma vista mais profunda da ilha). Fui com O., a cozinheira russa que também me ficou no coração, não só pelo que cozinha mas pela maneira fascinante como pronuncia o meu nome (entre os vinte diminutivos diferentes, Tanitschka foi o que mais me agradou, vá lá saber-se porquê).

Malta tem alguns pretos. Não muitos, mas alguns. Comparado com Queluz, onde morava antes de me mudar para as Caraíbas (onde há alguns brancos), não tem pretos nenhuns, mas para O. tinha imensos. Dizia-me "Há tantos, que impressão!" e eu respondia-lhe «Por amor de Deus, tu vives na África do Sul». Respondeu-me que não vinha à Europa para ver pretos e eu demorei três dias a digerir a conversa e a tentar não pensar em O. como uma pessoa horrível. Afinal, para o povo dela os georgianos eram pretos, por terem sido escravos. Senti, pela primeira vez desde que ando nesta vida, um choque cultural. Os malteses impressionaram-me muito mais do que os pretos.

São todos relativamente feios e encardidos. Os narizes são os piores que alguma vez vi na vida (talvez o dono do D., judeu, tenha escolhido a ilha como base por causa dos narizes, não sei); as raparigas pintam-se demasiado, vestem-se pessimamente e são barulhentas, não têm graça nem discrição. Os mais bonitos são os velhotes e as velhotas, mas sempre dentro do desengraçado. Apesar de tudo, a gente é simpática, prestável, tem sentido de humor e inspira respeito: o mal que os malteses sofreram durante a II Guerra Mundial e o bem que, em contrapartida, isso fez à Europa é digno dessa admiração.

Valetta foi mais bombardeada num mês do que a Alemanha inteira durante a II Guerra Mundial, o que explica uma certa esquizofrenia arquitectónica de que ainda hoje padece -- sem na verdade padecer, porque algumas misturas são tão surpreendentes que não conseguimos decidir se as adoramos ou detestamos. A sua posição estratégica fez com que fosse ocupada e disputada desde sempre pelos povos mediterrâneos. Pisar-lhe o chão, ver-lhe a luz e a trovoada é outra prova de que Deus é injusto: há privilégios que deviam ser de todos.

Agora volto ao de sempre. Sei para onde quero ir mas não sei para onde vou. Procuro trabalho e paz (desde sempre, aliás). Para já, nem um nem outro. Mas se Deus é injusto, porque nos fez tão justos? N. acaba de atirar um balde de água anónimo ao Bob Dylan da Costa de la Pols, que o calou imediatamente. Antes já tinha tido a honestidade de lhe dizer "a tua música é uma vergonha" e "és insuportável". Como resposta, recebeu um "vai levar no...". Felizmente, a água lava quase tudo.

sexta-feira, 12 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 12-10-2012 (cont.)

Uma cidade revela-se quando as ruas estão vazias; tal como um bar, de resto. Cheios não há um que seja feio, ou mau. As ruas vazias permitem-nos fazer delas o que queremos; podemos imaginá-las há duzentos anos, imaginá-las no inverno que aí vem e durante o qual não estarei aqui, ou na primavera passada, quando as flores começaram a aparecer às janelas e os ombros das senhoras a ver o sol. 








Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 12-10-2012

Esteve a chover e é feriado. É uma boa combinação: as ruas ficam vazias e a luz bonita. Fui dar um passeio - mais precisamente passear a máquina fotográfica, farta de estar em casa.

Como sempre acabei numa das marinas. Pensei nos domingos em Genève nos quais me calhava escolher o destino do passeio familiar. "Lá vamos nós ver os barcos outra vez", ouvia-se pela casa fora mesmo antes de eu anunciar que íamos, oh surpresa, ver os barcos.

Em Palma há muito barcos e muitas marinas; escolher um destino seria provavelmente menos monótono para a criançada. Para mim não é, claro. Mas não há nada de metafísico nisto; é simplesmente falta de imaginação.




quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 10-10-2012

À frente do Antiquari - ou seja, imediatamente por baixo da nossa casa - está o Café Lounge (cito) Mari-Lin.

A rua terá talvez três metros e meio de largura, mas parece que estão em dois planetas diferentes. O Mari-Lin é quadrado, no sentido literal e no do antigo calão, square, branco, limpo. Tem uma esplanada grande (enfim, o maior possível) com as mesas ao longo do muro que separa a rua de umas escadas; durante o dia protege-as com chapéus de sol grandes, beiges, quadrados (claro). A empregada é uma loira incaracterística (às vezes acontece) que anda muito direita, com os seios a abanar e a travessa por cima da cabeça, como se tivesse medo que chova e os seios fossem limpa-pára-brisas preventivos. A clientela é constituída na sua maioria por turistas; a minoria são casais square, grupos square; é raro haver uma pessoa só a uma mesa, e quando há é, terão adivinhado, square.

O Antiquari tem uma esplanada minúscula - duas mesas, às vezes três. As pessoas sentam-se nos degraus da escada (em Palma há muitas ruas que são, ou têm, escadas como Lisboa). Vêem em grupos grandes, em pares, sozinhas. Só ao meio dia, quando abre, há alguns turistas; depois a fauna local toma o local de assalto e a de fora senta-se nas mesas em frente, tristonha. Por dentro é castanho, escuro, vivo, pequeno.

Não sei se as mulheres do Antiquari são mais bonitas do que as do Mari-Lin. Os nomes prestar-se-iam a alguns interessantes jogos de palavras, se se quisesse. Desde que cheguei entrei duas vezes no vizinho de baixo - uma delas para ver se havia net, porque a que temos em casa é-nos fornecida, simpática e involuntariamente por ele. Ao Antiquari vou muitas vezes - como hoje, beber um Hierbas Tunel, bebida na qual estaria viciado, se fosse de vícios; ou pensar que a tristeza se dissolve melhor no degrau de umas escadas a olhar para tristes do que no meio dos tristes a olhar para gente como nós.

Ou ouvir Hildegarde von Bingen seguida pela Orchestra Baobab e pensar na quantidade de planetas que habitamos.

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Às quartas o Antiquari organiza um Clube de Línguas: pessoas que falam uma determinada língua juntam-se com quem a quer aprender e passam uma hora ou duas, não vi bem, a conversar, contar histórias, trocar experiências ou expectativas.

sexta-feira, 5 de outubro de 2012

Palma de Maiorca, Baleares, Espanha, 05-10-2012

Porto

Fui a um restaurante sugerido pela mais portuense das minhas amigas, e amigos. Chama-se O Buraco e fica na rua do Bolhao (estou sem tis, por uns dias). Todos os restaurantes deviam ser assim. O senhor Manuel, que suponho seja o dono, cumprimenta todos os clientes que entram pelo nome ou pelo título. Pergunto-lhe "o que vou comer" e ele diz-me que tem uma feijoada muito boa. É um understatement, modéstia tao louvável como excessiva. Para beber o empregado pergunta-me se quero beber um verde tinto "feito pela casa". O vinho é excelente, picante, complemento ideal da feijoada.

É proibido vendê-lo. Mesmo admitindo que a ASAE mais nao faz do que aplicar a legislaçao, por que nao se a altera no sentido de permitir a venda do fruto do trabalho e dedicaçao das pessoas? Podia por exemplo tornar-se obrigatório a informaçao de que o produto é caseiro; quem quer come quem nao quer compra outro.

Foi uma passagem muito curta, demasiado curta. É bom saber que ha uma linha aérea directa e barata para lá.

Palma
O Antiquari é uma mistura de Café Tati, Café Buenos Aires, Marchand de Sable e mais meia dúzia doutros cafés cujo nome agora me escapa, mas sao bons, bonitos, conviviais, com boa música e melhor ambiente.

É aqui que espero N. pois nao levei as chaves de casa para a viagem. Ainda esta calor em Palma, a cidade está na rua, bonita e sorridente. E eu nela, como se aqui tivesse nascido.

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Agora temos um músico residente nas escadinhas à frente do Antiquari. É lamentável, coitado, o senhor. Toca mal e canta pior, com uma voz fanhosa, cançoes de Bob Dylan, Beatles, Neil Young ou Eric Clapton. É tanto pior quanto partilho a casa com dois músicos, um dos quais, pelo menos, excelente; e tenho uma namorada que canta melhor (e mais raramente, infelizmente) do que escreve.

Só dou dinheiro a músicos de rua que tenham um mínimo de qualidade - por isso apoio a política do metro de Paris de seleccionar quem nele toca - e agora encontro uma razao suplementar: solidariedade com os moradores das redondezas.

terça-feira, 2 de outubro de 2012

Lisboa, Portugal, 02-10-2012

Às vezes parece-me que a minha residência principal é um aeroporto qualquer, um aeroporto-todos-os-aeroportos do mundo; e tudo o resto - barcos, hotéis, quartos - não passa de residências secundárias.
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Durante o quarto o tempo é deformável, irregular. Um gajo entra de quarto às três da manhã, por exemplo; uma eternidade depois são três e dez. Não acontece nada e num ápice são quatro, é preciso preencher o diário de bordo: posição, rumo, velocidade, vento, mar, dados das máquinas. Demora cinco minutos e quando acaba já são cinco da manhã e é preciso recomeçar. De repente são seis, o quarto acaba e o mesmo gajo começa a pensar que os quartos de quatro horas são muito melhores.

O quarto acaba. Oríon já não está onde estava às três; nem a lua, quase a rebentar, de tão cheia; nem o A., que entretanto já andou trinta milhas. Nada está no mesmo sítio, nada é igual. Daqui a pouco aparece o sol, as cores mudam, talvez o vento sei lá; talvez apareça um eco no radar, ou desapareçam os que lá estão.

Nada é igual, nem o passar do tempo.

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Um homem no mar não gasta dinheiro. A essa imagem - de que tanto gosto - do marinheiro perdulário há que acrescentar, sempre, a do marinheiro franciscano. Quanto mais não seja por falta de franciscas, o que é um bocadinho contraditório.

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Helletvoetsluis

A viagem acaba aqui. Por mim podia ter continuado três semanas, ou meia dúzia de meses.

O chauffeur de táxi vem buscar-nos de casaco e gravata, num carro também ele engravatado. É delicado, educado, conduz como fala, suavemente, sem solavancos. Não sou muito dado a comparações, mas é impossível não pensar nos chauffeurs de táxi de outras paragens.

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Amsterdam

Um dos meus objectivos era comer um  Nasi Goreng, ou Bakmie Goreng, com um monte de Sambal a acompanhar e a excitar tudo o que há de glândulas no corpo. Mas "já não há pure Indonesian restaurants como antigamente", diz-me um senhor da minha idade que vende flores (e o diz como se tivesse acabado de comer uma por engano). "Vai àquele chinês, também fazem pratos indonésios". Não fui; fui ao De Roode Leeuw, um restaurante lindo, bom e (surpresa) caro na Damrak, que "há cem anos serve autêntica cozinha holandesa" (dizem isto e não se apercebem do oxímoro) comer mexilhões.

Passei uma hora e meia em Amsterdam; não fiquei a morrer de vontade de lá voltar. Que será daquela cidade sem as tascas indonésias, agora substituídas por restaurantes argentinos, em cada esquina um?

E cheia de miúdos a fumar charros, como se estivessem a descobrir a Lua.

Vou de comboio de Rotterdam para Amsterdam. A Holanda é um país que só tem litoral, não tem interior. No meio do campo aparece volta e meia uma marina - e grande - ou um porto de batelões.

As placas de sinalização em Rotterdam indicam tanto as ruas como os números dos cais.

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De passagem em Lisboa, de novo. Mas estive cá há quatro dias. Quero ir-me embora. Uma vez vistos e conversados os amigos pouco me prende aqui.