sábado, 30 de março de 2013

Napa Valley, Califórnia, EUA, 29-03-13

O diabo teceu-as, claro. E bem tecidas. Para além do atraso nos trabalhos do barco - não só perdemos o avanço que tínhamos como ganhámos atraso - a mulher de M., que tem estado bastante doente, está pior e ele vai provavelmente ter de regressar a casa.

Mas se ele, diabo pensa que estou muito preocupado bem pode desenganar-se. Não tenho uma pistola apontada à cabeça, tenho uma tripulação porreira e se tiver de evitar uma escala ou duas pouco me importa.

De modo saímos hoje (um dia de atraso, um) para San Francisco, ou lá perto. Estou farto de verde, sou alérgico à clorofila, chega de vacas. E acabamos lá a meia dúzia de pequenos nadas que faltam. Talvez nem chegue a meia dúzia.

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Nos Açores chegava a levar duas horas para fazer os setenta metros de pontão, quando ia despedir-me dos clientes. Aqui não é bem assim: só C., armador de um 36' e de um 41' me convida frequentemente para ir a bordo de um dos seus barcos beber uma Smithwicks. Tive o azar - ou a sorte, não sejamos bégueule - de lhe dizer que é a minha cerveja preferida. Comprou uma quantidade delas e agora convida-me todos os dias. Ainda não tive coragem para lhe dizer que não devo beber cerveja, ou que nestes dias bebi mais cerveja do que desde o princípio do ano (não é verdade, mas é tentador). Paciência. O homem é simpático e uma cerveja de vez em quando não faz  mal a ninguém.

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Seria emocionante, uma série de posts intitulada América, América. Mas enfim, todos sabemos como é, não seria muito original. A novidade é viver esascoisas quotidianamente, na linha da frente, por exemplo.

 O advogado que anda a pôr todas as marinas do Napa River em tribunal por obscuras e ambientais razões - mas que num sem precedentes élan de altruísmo se dispõe a abandonar as queixas contra o pagamento de 37 mil dólares. O adorável tripulante que me diz, quando discutimos o direito ao porte de armas que tem sete carregadores de trinta munições (um dos temas em discussão é os carregadores e respectivas capacidades) e que está à espera de mais sete. E assim por diante.

Os Estados Unidos não me entusiasmam tanto quanto eu pensava me entusiasmariam. Mas estive cá pouco tempo, e o país é vasto.

Encontros - Steve J., Napa Valley

- De que parte de Portugal és? - pergunta-me o homem da bomba de combustível da marina quando me ouve falar com M. durante a manobra. Íamos fazer um teste de mar e fomos a bancas (meter combustível, em linguagem de mar).
- De Lisboa. Como reconheceste o sotaque?
- Vivi dois anos em Setúbal.

 Encontro-me com Steve alguns dias depois. Levou-me à cabana que lhe serve de atelier e escritório ao pontão do combustível. Steve é designer e acredita nas virtudes do mostrar mais do que nas de explicar.

- Tens de ver, se não não percebes - diz quando lhe sugiro que se não tem tempo podemos falar no barco.

Começamos por falar dos seus anos em Setúbal, dos estaleiros navais artesanais que não souberam adaptar-se e procurar novos mercados quando a pesca acabou em Portugal e morreram todos. Depois falamos, é inevitável, das pessoas que conhecemos. Era amigo do G. O'Neill, diz-me que lhe dê um abraço quando o vir, explico-lhe que não será assim tão cedo mas será entregue.

Continuamos pelo seu projeto actual, uma galera birreme - "o projecto mais antigo de todos aqueles em que trabalhei. Espero muito que este se concretize" - e daí vamos para trás (incluindo uma réplica de uma caravela, da qual depois me oferece uma vista de perfil). Steve desenha e ajuda a construir, como responsável pela mastreacão, réplicas de barcos antigos. Comecou ajudante e aprendiz de um senhor que trabalhou para Walt Disney a fazer o COLUMBIA, e desde daí salta de projecto para projecto. Os seus clientes são museus, parques de diversões, cidades (a caravela era para uma cidade da costa oeste dos Estados Unidos), produtores de cinema ou simplesmente privados que querem um barco diferente. Tem um 34' de 1890, no qual vive, aqui na marina.

O trabalho na estacão de combustíveis é pouco e deixa-lhe muito tempo livre. Os desenhos não são de brinquedos, de réplicas mais ou menos fantasistas. "Onde vais buscar a informacão para os planos?" Mostra-me uma estante cheia de livros de história marítima, explica-me que o seu mentor foi contratado pelo Walt Disney porque "os meus desenhadores só sabem fazer barcos para bandas desenhadas e não é isso que eu quero para o COLUMBIA" (Steve conta-me que o senhor desenhava enquanto Walt Disney falava durante o almoco para o qual este o convidara. Terminada refeicão mostrou-lhe o desenho. "O trabalho é teu. Vamos para os estúdios", terá sido a resposta), mostra-me um capacete espanhol da época das descobertas - "se não tiveres um modelo só podes desenhar as coisas de um ponto de vista. Com um modelo podes dar-lhes as voltas todas que quiseres".

Da estante saem três livros iguais, duas reproducões e um original de um livro de 1819, com bastantes ilustracões de poleame, massame, cabos, técnicas de mastreacão, esquemas de construcão. "Este livro é fantástico. Tudo o que fiz dos séculos XVIII e XIX vem daqui. Foi o primeiro e mais completo guia de vela daquela época. Tive um sucesso fenomenal. Toma, dou-te este. Este não porque é um original que encontrei num alfarrabista de Filadélfia, este também não porque é o que uso (mostra-mo, cheio de sublinhados, anotacões, setas), mas este é teu.

O presente comove-me. Para além dos barcos Steve também desenha casas e trabalhou num rancho, onde aprendeu a recuperar selas antigas. "Foi depois do meu divórcio. Foi muito difícil e resolvi "levar o remo para terra". Passei dois anos a trabalhar num rancho.

Mostra-me desenhos de cowboys, quintas, terra. Mas a minha mente ficou no "The Young Sea Officer's Sheet Anchor or a Key to the Leading of Rigging and Pratical Seamanship" by Larcy Lever, Esq., "With an Appendix containing several figures illustrative of novelties and improvements in rigging &c &c &c." que trago para bordo e agora folheio.

quinta-feira, 28 de março de 2013

Napa Valley, Califórnia, EUA, 26-03-13

Ontem fui às compras. Estou muito orgulhoso. Consegui comprar quase tudo o que precisava, não excedi muito o orçamento, e só comprei um coisa que não estava prevista (justificadissimamente: um casaco de linho óptimo, lindo, em saldo. Tenho algumas dúvidas sobre a sua absoluta necessidade, mas enfim, a melhor abordagem é a do ceguinho: logo se verá).

Mas também fiquei bastante preocupado, muito mais do que orgulhoso. Cada vez me é mais difícil estar numa loja, cada vez me sinto mais desamparado, perdido e incapaz de gerir aqueles parâmetros todos: o preço, a medida, a estética, a adequação. Fico num estado de tenção que roça (ou pior ainda penetra) o pânico.

Na primeira loja onde fui (uns grandes armazéns chamados Macy's) ainda consegui dizer à senhora que fazer compras é para mim uma experiência traumatizante, ao que ela respondeu laconica e precisamente "estou a ver"; na segunda fui atendido (enfim, atendido é um grosseiro exagero) por um jovem com piercings ridículos e abandonei a missão.

Fui para um wine bar esperar que os óculos ficassem prontos - outra missão concluída com sucesso. Sou o feliz, e neste caso também orgulhoso proprietário de duas armações da conceituada e de há muito minha conhecida marca Ray Ban, adquiridos sem esforço e a um preço que me faz temer pelo futuro da loja. E de um par de olhos em bom estado, não é despiciendo. Apesar de tudo o que lhe faço o meu corpo é generoso e tolerante.

Na verdade o mérito não é meu. É do vendedor (um senhor maricas que levou a simpatia e a eficáca ao ponto de insinuar que eu devo cortar o cabelo: "naturally you need to cut your hair", disse-me). E acrescentou, quando eu lhe expliquei que corto o cabelo apenas duas vezes por ano, porque faça o que fizer nunca serei bonito, e mais vale não gastar dinheiro com objectivos inúteis "se quer escolher uns óculos facilmente".

A compra dos óculos e consulta médica correram bem: raramente estive sozinho, o processo desde a consulta - bastante completa - à escolha das armações e lentes é rápido, fluido e havia boas oportunidades - uma das armações estava em desconto por ser uma devolução e na outra reduziram o preço em cinquenta dólares por causa de um quase imperceptível risco numa das lentes. O método de vendas daquela cadeia é apreciável.

O que falta vai ser comprado no México, e depois espero estar vestido para os anos que aí vêm.

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O trabalho a bordo do ARTIC FRONT avança a bom ritmo. Estamos (muito ligeiramente, é certo, mas estamos) adiantados em relação ao que tinha previsto, graças às qualidades dos tripulantes. Dois bombeiros profissionais - M. era bombeiro amador, e R. e Er. são antigos colegas dele -, e E., uma jovem canadiana que inicia connosco um périplo de um ano pela América Latina, "entre o masters e o trabalho". É engenheira civil, bastante desenrascada e o facto de nunca ter posto os pés num barco não a incomoda a ela nem, graças a Deus, a mim. A rapariga parece ser bastante autónoma.

Trabalham todos bem, depressa, cheios de energia e bom humor. Mas uma vez sou o único a bordo com experiência de mar (R. e Er. fazem vela ligeira). Tenho umas certas saudades de navegar com uma tripulação experimentada, eficaz, num barco rápido; mais uma coisa que vai ter de esperar. São tantas...

Mas sermos ou não capazes de respeitar a ETD vai depender do que acontecer hoje, de modo tenho sempre presente aquele velho dito francês, segundo o qual on n'est pas sortis d'auberge; e mantenho - metaforicamente, claro - os dedos cruzados, não vá o diabo, grande companheiro destas andanças tecê-las.

O ARTIC FRONT não está nem de longe preparado para receber clientes, e quero chegar rapidamente a Quepos para o pôr de novo no estaleiro: pintar o convés, reparar a borda falsa e outro madeirame, fazer capas novas para os coxins, mudar o piso do salão, lavar as velas.

M. é contabilista de formação e ele próprio reconhece ter mais jeito para números do que para a estética.

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Teria preferido fazer a viagem sem escalas. Vinte e cinco dias de mar vinham a calhar. Infelizmente devemos parar pelo menos uma vez por semana, para que M. possa trabalhar. Vamos fazer escalas no México, nas Honduras (a meu pedido) e na Nicarágua. Podia ser pior, verdade seja dita. Tudo pode sempre ser pior, de resto. Mais facilmente do que melhor. Somos bons a gerir a felicidade, e maus a lidar com a tristeza



segunda-feira, 25 de março de 2013

Napa Valley, Califórnia, EUA, 25-03-13

Ontem foi dia de teste de mar. De rio, para ser mais preciso. Curto, mas não era preciso muito mais. Pequeníssimos problemas aqui e ali; parece-me possível respeitar o ETD. Rezo para que sim, preciso de mar como de ar ou luz.

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A Napa Valley Marina fica em pleno campo. Não é raro o dia em que o vento nos traz ligeiros (felizmente) eflúvios de estrume. Não tem um metro quadrado de "imobiliário", aspas dedicadas às luminárias do nosso querido por assim dizer país, que do alto da sua sabedoria dizem "uma marina sem imobiliário não é rentável" e abanam a cabeça, talvez para ver se encontram mais uma asneira ou duas naquele vazio todo oco que lhes é a cabeça.

(A marina é pequena e perdida no meio de nada, mas isso não me impediu de encontrar um tipo que viveu em Portugal e conhece o G. O'Neill. Se por acaso alguém ler isto e vir o G. por favor diga-lhe que tem um abraço do Stephen (desenhador de caravelas e outros barcos antigos para museus, filmes, etc.. Em breve na série Encontros).

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Hoje vou às compras em San Francisco. A tripulação chega hoje à noite (dois) e amanhã (uma. Vai ser um bocado apertado, o barco só tem dois camarotes, mas não é o fim do mundo). Eu vou aproveitar o último dia de calma: óculos, computador, roupa, CD, alguns livros... a lista é longa e é boa.

Depois é o programa habitual: inventário (e mais limpezas), inspecções diversas, provisões e sobressalentes, plano de viagem, clearance, e larga.

Isto, claro, se os pequeníssimos problemas que vi forem realmente pequenos. Às vezes são. E não aparecerem novos. Às vezes não.


domingo, 24 de março de 2013

Napa Valley, Califórnia, EUA, 24-03-13

Não há barco que não tenha uma história; raras são as que têm algum interesse. A do ARTIC FRONT pode não ser muito original, mas é das mais humanas que tenho conhecido: um senhor constrói um barco durante dezanove anos; muito pouco tempo depois de o barco ficar pronto adoece gravemente e dá-o a um amigo. Este não se interessa por barcos; deixa-o morrer tranquilamente num canto. Ao fim de dez anos (ou seja, quase trinta depois de ter começado a ser construído) o "amigo" entre aspas de propósito decide vendê-lo. Enter M., que o compra por um preço que faz a uva mijona passar por caviar (verdade seja dita que levou ano e meio a fechar o negócio ) e enche o bote de mimos.

Finalmente o barco vai servir para aquilo por que foi construído: dar vida a um sonho. Trinta e dois anos depois.

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Ontem foi o primeiro dia de trabalho a sério. Limpeza, claro. Há muitas razões pelas quais pessoas asseadas, civilizadas, educadas conseguem viver em barcos imundos; mas bem espremidas vão todas dar ao mesmo: não é o seu ambiente natural, e não pensam que certas regras são universais (não incluo uma certa e determinada nacionalidade nesta explicação; pouco interessa).

Na verdade, limpar uma embarcação - e sobretudo limpá-la a fundo, como vamos fazer nestes três ou quatro próximos dias - é uma tarefa de que gosto muito. É a melhor maneira de a ficar a conhecer, literalmente por dentro e por fora. É como namorar uma senhora apesar de já termos decidido que a resposta é sim; só queremos conhecê-la um bocadinho melhor antes.

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Pela primeira vez desde que atravessei o Atlântico no D. H. tenho um armador que não sabe tudo. É indecente, de tão bom.

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Sexta vamos para San Francisco e sábado largamos. Não sou supersticioso mas não gosto de correr riscos inúteis; não me passaria pela cabeça largar numa sexta-feira para uma viagem de três mil milhas.

Não sei se vamos conseguir respeitar o ETD, mas como sempre prefiro ter uma data e ajustá-la a trabalhar sine die. "Largamos quando estivermos prontos" é receita segura de desastre.

sábado, 23 de março de 2013

Napa Valley, California, EUA, 23-03-13

Um bocadinho de frio não faz mal, antes pelo  contrário. Espicaça, estimula, refresca, faz-nos andar depressa.

A viagem foi longa e demolidora. Em Newark preferi comer um bacalhau a ir passar uma hora ou duas em Nova Iorque. Erro. O bacalhau não estava grande coisa, e o preço não teria sido muito diferente do que acabei por pagar na Adega Grill, um restaurante no qal se pede bacalhau assado e a encantadora rapariga brasileira que nos serve pergunta "com arroz?" Valeram os dois copos de Duas Quintas que bebi com o Júlio Quirino, que de repente se sentou ao meu lado, vindo de Évora.

O ARTIC FRONT está em Napa Valley, em plena região vinícola. Quando vamos almoçar ou jantar, M. (o armador) e eu passamos por extensas vinhas que me fazem lembrar a França.  Como o barco é um espécie de AQUARELLE ligeiramente maior acho que sim, corresponde, está em ordem.

O AQUARELLE foi o primeiro barco como qual trabalhei para mim. Era um cofre-forte de 35 pés, com dois camarotes e linhas cuja função não eram fazer o barco andar, mas manté-lo a flutuar acontecesse o que acontecesse, viesse o que viesse.

Foi com ele que comecei uma empresa de charter nos Açores. A vida dá voltas como um tipo com cálculos renais se contorce e esperneia na cama. Espero que a hipótese de Marx sobre a repetição da história não se lhe aplique.

Mas é-me simpático, apesar da sua enorme capuchana - as capuchanas estão para as embarcações como as marquises para os prédios - das caixas enormes com que M. encheu o convés,  das duas demãos de tinta de que precisa (e vai levar, quando chegarmos a Quepos).

Vai ser a minha casa, até encontrar uma em terra.

Agora há trabalho e muito, para levar esta coisa até lá.




quarta-feira, 20 de março de 2013

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 20-03-13

O dia começou bem, se se pode chamar começar a um almoço. Tive direito às minhas fajitas, porção dupla; a Sandra não brinca em serviço. Não sei o que fiz entretanto, talvez porque não seja muito importante [sei, fui à praia]. O jantar foi um um  churrasco na doca, desta vez do 2-L.

É o meu último em Antígua; foi um resumo condensado, justo, correcto da minha vida nesta ilha.

Conheci A. (ou B., tem vários nomes), maquinista do 2-L. Tem trinta e oito anos e fala-me do relógio biológico. Conto-lhe que esse tal de relógio dá saltos, avança e pára, recua e pula; como todos os outros relógios. A idade não tem nada a ver.

É um tipo inteligente, sensível e culto. Não percebe que eu queira ter filhos agora, com dois já tão crescidos. Não lhe digo que querer não é o verbo adequado. O verbo é outro, mais difícil do que a vontade. Querer é uma tradução muito aproximada, falaciosa.

O churrasco estava francamente bom. Um chefe num mega iate ganha entre sete mil e quinhentos e nove mil e quinhentos dólares por mês, mas transpira cada um desses dólares, e merece-os.

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Havia dois runs à prova, ontem. Um, o Post Office Rum (o senhor também gere os correios, para além da bomba de gasolina) é bom, sem mais. Forte e saboroso, mas sem corpo, sem cuisse, como diria um francês. O outro é francamente mau, não vale sequer a pena falar dele.

A quarenta EC o galão, o Post Office Rum vale francamente o dinheiro que custa. Muito mais do que o dinheiro que custa.

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Faltam quatorze horas para me ir embora de Antígua.

terça-feira, 19 de março de 2013

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 19-03-13

A praia chama-se Windward Beach. Passei-lhe ao largo inúmeras vezes, mas só há meia dúzia de dias a visitei por terra. Tem pouca gente: não tem sombra, o acesso à água é difícil, não há lugar para estacionar.

Hoje estava totalmente vazia e eu aproveitei para tomar banho e nadar como gosto; só estava eu e o Jon Voigt do Coming Home, ele na cadeira de rodas dele e eu na minha, que felizmente não se vê e não me impede de andar. Ficámos os dois por ali a boiar, a apreciar a beleza do sítio, a nadar devagarinho.

Depois ele foi-se embora e fiquei sozinho.

Não gosto muito de praia, mas também isto está a mudar. É simplesmente preciso seguir algumas regras simples, e a primeira é que a praia não deve ter mais ninguém; a segunda é não levarmos livros ou outra qualquer distracção; a terceira é passar mais tempo dentro de água do que fora dela.

Nada que não se tenha num barco? Não: num barco falta a paisagem, linda de morrer. E duvido que o Jon Voigt tivesse tido a paciência de me fazer companhia aquele tempo todo, se tivesse um barco com que me ocupar.

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Amanhã deixo de contar os dias e começo a contar as horas. E a Sandra do Skullduggery prometeu-me uma Fajita como presente de despedida.

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Como sempre vamo-nos embora de um país e descobrimos que nos fugiram coisas sem fim. Ontem no churrasco do A. fiquei a saber que o D. do Waterfront vende dois runs aparentemente magníficos. Um feito pelo irmão, também D.; e outro por um senhor que tem uma bomba de gasolina no meio da ilha e faz rum nos tempos livres.

É para lá que vou agora. Espero que os runs sejam tão bons como me garantiram; e se tal for o caso, ainda bem que só os descobri agora.

Encontros

Com a Carlotta e o Oliver, que estão a dar a volta ao mundo num Rival 32. 

(Primeiro de uma nova série de posts aqui no Diário).

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 19-03-13

[18-03-13]
Escrevo na pérgola do Reef Gardens, um dos meus lugares favoritos no mundo. Ao longe, Monserrate não se vê, envolta em núvens. Está normal; nos últimos dias tem estado claramente visível, as suas três bossas a fazer lembrar o monstro de Loch Ness ou um dragão semi-submerso, penacho de fumo a sair-lhe das narinas. Mas tanta visibilidade tanto tempo é rara nestas paragens quentes e húmidas.

Da baía também exala o habitual silêncio; é espantoso como esta paisagem consegue apagar os sons todos que lhe são estranhos: a conversa do casal numa das mesas do jardim, o zumzum do tráfego nesta hora de regresso a casa, o ocasional avião. Quando olho para a baía tudo o que vejo é silêncio, barcos fundeados, silêncio, um dinghy a puxar um esquiador, em silêncio e tão longe que parecem miniaturas. Tudo parece a cena de um filme ao qual um Deus misericordioso tivesse tirado o som.

A harmonia - palavra que há quatro meses não me ocorre - volta, pouco a pouco.

Penso muitas vezes que Bequia é o lugar onde morrerei, se esse mesmo Deus misericordioso mo conceder; Antígua, em contrapartida, é um lugar de vida, com seus altos e baixos, os seus cumes e abismos, harmonias e convulsões.

O silêncio continua: palpável, sólido como betão armado, visível. Um pequeno sloop sai da baía, pano todo em cima; o sol aproxima-se da colina atrás da qual sei que se esconderá daqui a pouco; penso que antes disso tenho um churrasco no A., para o qual P. simpaticamente me convidou. Sinto-me como se estivesse a chegar pela primera vez aqui. A harmonia é um país novo.

Sei que vou demorar muito tempo a subir a íngreme, longa e solitária encosta que tenho pela proa; sei que um dia serei de novo feliz, e que amanhã não é a véspera desse dia. Mas só me interessa o destino, não o tempo que demorarei a atingi-lo. Olho para esta baía, para este silêncio e é esse destino que vejo, essa felicidade que me espera ao longe. Eles não mentem.

Os mastros e os brandais brilham, com o sol a bater-lhes quase na perpendicular. Ontem via neles as barras de uma prisão. Hoje vejo instrumentos musicais mudos; conheço-lhes tão bem os sons... Em breve os ouvirei de novo.

domingo, 17 de março de 2013

sexta-feira, 15 de março de 2013

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 15-03-13 / II

Um tema que me é caro: a hierarquia, o respeito, a obediência. Um marinheiro só reconhece uma hierarquia: a do saber; e só respeita quem merece ser respeitado - a quem não merece o mar encarrega-se rapidamente de pôr no seu lugar.

Nem hoje, com a disciplina a bordo muito mais institucionalizada do que no séc. XVII, um capitão faz o que quer da sua tripulação se não for por ela amado e respeitado. Em contrapartida, se o for é capaz de os levar a fazer tudo e mais alguma coisa, não há à face da terra ser mais leal do que um marinheiro.

As razões para isto são óbvias: o mar não se compadece com hierarquias baseadas em nomes, títulos, aldrabices ou seja o que for que não seja saber. E a sobrevivência depende do grupo, nunca de um indivíduo só.

A este respeito encontrei hoje duas passagens num livro que estou a ler, chamado The Command of the Ocean, A Naval History of Britain, 1649 - 1815.

O livro é monumental, em todos os sentidos do termo. Muito gostaria eu de ter uma coisa semelhante  em e sobre Portugal.

"Contemporaries were far more impressed by the Navy's relaxed, not to say chaotic discipline. By modern standards the authority of a sea officer was weak, and ships functioned at sea on an implicit basis of co-operation and consent which sprang from the experience of seamen bred from boyhood to the necessity of teamwork for survival."

" ...but he had wrecked the system of mutual respect on which all naval discipline ultimately rested."

Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 15-03-13

Numa indústria que conta notoriamente poucos portugueses ontem encontrei dois, o P. e o C. Ambos trabalharam apara mim no início das suas carreiras. P. é hoje capitão de um veleiro de 33 m; C. é o imediato dele, mas tem uma longa história de comandos tanto de barcos a motor como de barcos à vela. Como bons portugueses andam às turras e C. vai desembarcar e voltar para Maiorca, onde vive com a mulher e as duas filhas. Os portugueses são os piores inimigos de si próprios.

Foi um prazer, mas não só: ontem o orgulho deu uma voltinha por aqui.

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"Cada dia que te vejo estás melhor", diz-me B., do Seabreeze. E termina, em simultâneo comigo: "está mais perto".

quinta-feira, 14 de março de 2013

Falmouth Harbour, Antigua e Barbuda, 14-03-13

Daqui a precisamente uma semana (se não houver atrasos, claro) estarei a embarcar no avião que me levará para San Francisco. Estou tenso, impaciente, nervoso; sinto-me como aquelas plantas submarinas que estão presas a uma rocha e se agitam com a corrente, como se pedissem ao deus delas que as libertasse, as deixasse ir.

Uma semana é um marco importante. A partir de agora faltam dias; a unidade inferior será a hora. Nunca pensei que quereria tanto deixar Antígua; (e não quero, preferiria de longe ter encontrado aqui um emprego que me permitisse parar um bocadinho). Mas não encontrei; resta-me esperar não ter perdido com a troca.

Antígua não é um país no qual se possa passar muito tempo sem fazer nada. Para além de procurar day work - uma coisa que me leva cerca de uma hora todas as manhãs (enfim, as manhãs em que o procuro) - não faço mais nada. Vou à praia, de que não sou grande fâ; às cinco da tarde bebo o meu primeiro rum punch no Mad Mongoose (hoje foi uma excepção, mas tinha um pedido de uma amiga, daquelas a quem não se pode dizer não). Ando uma hora por dia. Leio muito, muito.

Nada.

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Ontem houve uma festa na praia. Em Antígua há festas todos os dias - dock parties, beach parties, theme parties, WTF parties. Não sou muito de parties, mas o de ontem foi agradável. Pelo menos o pouco tempo que lá passei: o pôr-do-sol estava lindo, o grupo de pessoas pequeno e simpático, a música ao vivo conhecida e um pouco repetida, mas como sempre bem executada pelos Fruto de la Manga.

Mas vim-me embora cedo. Ando com pouca paciência para festas, para a alegria e conversa de circunstância.

Daqui a uma semana ressuscito.

domingo, 3 de março de 2013

Jako, Falmouth Harbour





Falmouth Harbour, Antígua e Barbuda, 03-03-2013

Pela primeira vez em muito tempo Falmouth Harbour voltou a ser um lugar. Perdeu a qualidade de não-lugar. É um sítio do qual me quero ir embora o mais depressa possível, mas é um sítio (e ao qual espero voltar, claro, um dia de menos vento).

Dia 22 vou para San Francisco. De lá largo para Quepos, na costa Oeste da Costa Rica, onde conto estabelecer-me por uns anos. O projecto - lançar uma empresa de charter e de eventos empresariais - é apaixonante, e eu espero sinceramente conseguir apaixonar-me por ele.